Com Sangue é o último livro lançado de mestre do terror Stephen King, publicado pela Suma das Letras. Com Sangue, em inglês, If It Bleeds é uma antologia contendo quatro histórias que são a quintessência de sua maturidade e suas obsessões e preocupações como autor.
Nos contos King aborda onde se sente mais seguro, retornando aos temas e personagens queridos, com grande habilidade e coragem narrativa. É até possível vislumbrar neste volume uma prévia do que esse muito estranho 2020 seria.
Stephen King é uma figura literária e cultural que para alguns possam não ser, mas dever ser aqueles mesmo que não usam máscaras em uma pandemia ou os mesmos que não são capazes de ver um um trem prestes a passar por cima deles, mesmo que sintam o cheiro da fumaça, vejam suas luzes, percebam seu avanço na vibração. Presente nas últimas décadas com suas narrativas, King retorna como essa locomotiva, passando por cima dos desavisados, com toda velocidade, num compêndio de quatro contos que levam sua marca.
Não é a primeira antologia que o escritor desenvolve, para citar algumas Nightmares & Dreamscapes (1992), Tudo é eventual (2002), ou Escuridão Total sem Estrelas (2010). Embora Quatro Estações (1982) e Tripulação de Esqueletos (1985) ainda sejam os melhores, pela quantidade de adaptações feitas para o cinema com os contos encontrados nestes livros.
Os contos
O primeiro conto, O Telefone do sr. Harrigan (Mr. Harrigan’s Telephone) traz um menino ajudando um velho milionário aposentado, o Sr. Harrigan. Em troca de leitura e de pequenos serviços, o garoto conhecia a boa literatura e o velho da tecnologia que lhe foi apresentado. Um acontecimento fúnebre quebra essa amizade e se inicia um caminho de obsessão sem fim.
Uma história bem clássica, onde King concentra-se na juventude e nos avanços tecnológicos do que nos fatos supostamente fantásticos que podem envolver a trama. A origem da história está em todos os filmes que devorou na infância, como afirma o escritor em entrevista sobre o livro:
Quando criança, eu devo ter visto um filme – provavelmente um dos filmes de terror americano-internacionais que meu amigo Chris Chesley e eu pegamos carona até o Ritz em Lewiston – sobre um homem que tinha tanto medo de ser enterrado vivo que lhes pediu para colocar um telefone em seu túmulo. Ou talvez tenha sido um episódio de Alfred Hitchcock Presents.
Não temos nesse conto nenhum elemento, personagem ou momento realmente surpreendente como em outros trabalhos seus que envolvem temas sobre a morte e o luto, como fez em Animal Cemetery ou Revival (2014). Numa linguagem mais sóbria e bem inquietante, o conto sugere desde a tapefobia de Edgar Alan Poe até a hipérbole da tecnologia e da adolescência.
Somos legião
A vida de Chuck (The Life of Chuck) é um dos contos mais poéticos de King. Dividida em 3 capítulos, é contada do presente para o passado. Narra a vida de um cara e de todo um mundo à beira de fim: uma pandemia de suicídios, catástrofes como terremotos e eventos sinistros estão levando a civilização à beira do precipício. E uma pessoa começa a receber mensagens parabenizando por seus trinta e nove anos de serviço. Quem é esse cara e por que todo mundo está parabenizando ele?
“A vida é um mistério. A morte também ”, diz o personagem, e King explora os últimos dias e o faz com uma série de reviravoltas que funcionam perfeitamente. A princípio, King levanta o mistério e a perda; depois, por meio de um ar poético, dá um salto ao enredo que nos lembra até um sc-ifi mais carregado de lirismo.
O conto funciona não só por causa do que conta, mas por causa de como conta. É organizado em três atos que vão do possível presente ao passado, explicando quem é o protagonista desde sua maturidade até sua juventude e infância. Ao invés do típico avanço da infância, juventude, maturidade, velhice, morte, o conto empreende o caminho contrário e consegue transmitir a melancolia de King a partir da ideia que um dos personagens expõe: “E o que você faz pensar que você é o protagonista de algo diferente de sua própria mente?
O vampiro
Conto que dá título à antologia, é mais longo, recupera a fantástica Holly Gibney, personagem da trilogia Bill Hodges (2014-16) e The Visitor (2018). Um ataque terrorista a uma escola é o ponto de partida, Holly assiste ao noticiário e logo fica obcecada com o jornalista que está fazendo reportagens sobre ela, uma repórter que parece gostar da tragédia. Uma estranha teoria passa por sua cabeça; e se o jornalista não fosse humano, mas uma criatura que se alimenta da dor das pessoas?
Stephen King explora a violência e a dor, levando a ideia de um sanguessuga que se alimenta de causar sofrimentos. Uma reflexão sobre a violência e a mídia, e sobre o seu verdadeiro motor, o ser humano que se move constantemente pela dor alheia, parando para observar um acidente por ser viciado em dor … desde que seja de outrem. A morbidez da violência perante os espectadores de tragédias, comumente alardeada pelo sensacionalismo atual.
Ao longo da narrativa, mergulhamos no passado deste monstro que tem assombrado as grandes tragédias da humanidade, devorando o seu medo e as suas lágrimas.
Quando um autor é tão prolífico como Stephen King, é quase inevitável que ele não desenvolva temas que já tocou (infância, velhice, violência, monstros …). Nesse caso, o autor nos lembra com o novo visitante o seu Pennywise, como um gatilho de loucura e violência.
O conto não é o último que King se dedica a uma de suas personagens favoritas: Holly Gibney. O próprio Stephen reconheceu sua afeição por ela, uma detetive obsessiva com transtornos mentais, mas uma personagem que, apesar de ter sofrido, está crescendo, aprendendo, melhorando e se esforçando.
Outro fato, é que a história se passa no final de 2020. Um ano que cruzou a barreira do distopianismo, faz com que a narrativa se torne uma espécie de ucronia sobre o que teria acontecido se não tivesse acontecido a pandemia do COVID-19. Não há referências a máscaras, confinamentos, infecções, e a explicação é simples: o livro foi concluído antes que os primeiros casos fossem registrados na China em novembro de 2019, mas a leitura atual faz o que era a realidade até um ano atrás, parecem ficção científica, e o que parecia digno de um romance.
Ratos
“A cabeça de um escritor é o livro.” Esta frase poderia muito bem resumir o início da última história que fecha a antologia. Intitulada O rato (The rat), narra a história de professor universitário, Drew Larsson, de escrita criativa que escreveu contos ao longo de sua carreira e que apenas tentou criar um romance. Mas algo sai do controle e o manuscrito é queimado por ele, que quase também sua casa, com sua esposa e filhos dentro.
Anos depois, Drew tropeça na premissa de um romance, mas precisa de espaço e pensa em ir para uma velha cabana perdida na floresta. E onde ocorre um encontro sobrenatural comConvenção das Bruxas uma entidade que o levará a loucura…
Como vimos nas histórias anteriores desta antologia, King retorna aos seus temas familiares.Como um pretexto para falar sobre o processo criativo e como King vê a escrita como uma espécie de parto, como uma epifania para encontrar a paz interior.
Como já fez em outros textos, King interpreta seu personagem-escritor criando uma obra e serve como uma forma meta-literária de falar sobre o próprio enredo de uma ficção dentro de uma ficção. Em seu enésimo texto sobre a impossibilidade de escrever um romance, o próprio escritor enfrenta seus demônios e se pensa o quanto de King haverá naquele escritor destrutivo que não consegue encontrar uma maneira de terminar suas obras.
Equilíbrio
A antologia é complementada por uma breve nota do autor onde explica de onde vêm essas histórias (embora, muitas vezes, nem mesmo ele saiba) e acrescenta os agradecimentos. Stephen King é sempre interessante de ler, mesmo quando fala sobre seu trabalho.
A antologia nos traz de volta um KIng em boa forma, maduro, retornando aos temas mais comuns. Usando sua linguagem, brinca com recursos literários, gerencia temas e controla o que continua a afetar a maioria de nós. Os golpes de King agora não consistem em mortos-vivos ou massacres terríveis, mas em uma última linha, em sua velhice, no que é o fim de uma vida, que abala o leitor com força, porque todos iremos passar um dia.
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