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Encenação magistral de Adassa Martins no monólogo Se eu fosse Iracema

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Se eu fosse Iracema, contundente monólogo em cartaz no Espaço Sérgio Porto, gira em torno da condição indígena e teve origem com o interesse do diretor Fernando Nicolau, após ler um carta escrita pelos índios guarani kaiwoá, em 2012, que pediam que sua morte fosse decretada, em vez de tirarem a sua terra. A sofisticação e a elegância do espetáculo permeiam todos os seus aspectos: da dramaturgia (de Fernando Marques, brilhante) ao projeto gráfico do programa que nos é distribuído (assinado por Fernando Nicolau, que também assina a belíssima direção de arte).

Aliás, comecemos exatamente pelo projeto gráfico do programa: a brincadeira de luz e sombra já tem início exatamente aí – a imagem ambígua que ilustra a capa parece ser a das costas de um homem (ou uma mulher), com seus poros e suas dobras, o close na epiderme maleável, mas as costas, que também são o tronco de um ser humano, podem ser um tronco de uma árvore, talvez a mesma que está no centro do sóbrio cenário, em torno do qual Adassa Martins magistralmente encena, com versatilidade assombrosa, seus personagens. Um tronco, no caso do cenário, cortado logo em sua base, cuja representação externa é realista ao extremo, mas cujo centro é, novo jogo, uma espécie de mesa de vidro, tão urbana, tão citadina, tão lustrosa, tão industrial.

Os jogos estão todos aí, atravessando o programa e a cenografia, expressando tentativas de diálogo que não sabemos se irá se realizar: entre o homem branco e o homem (“de outra cor”, “de qualquer cor”), entre a história do homem branco – a história – e o folclore – todo o resto – , entre o desenvolvimento “sustentável” com muitas e amplas aspas e a natureza decepada de si mesma, entre a palestrante executiva que reforça, olhar maroto, que todo mundo quer ficar rico (e daí justificamos o desmatamento e sua velocidade) e a índia velha contando uma história que questiona a riqueza que de nada serve depois que todo mundo morre.

A sofisticação atravessa mesmo tudo: os jogos e o texto, que intercala histórias tocantes sobre nós mesmos enquanto índios atuais e descendentes de outros índios, a iluminação e a cenografia (apropriadamente clean) de Licurgo Caseira, o também apropriado figurino de Luiza Fradin e a escultura do busto de Bruno Dante, que fica atrás da plateia e cujas fotos ajudam a compor a arte do programa, em consonância com a proposta do espetáculo. Uma sofisticação que não dispensa (e que dela depende) a simplicidade e a sobriedade. Se alguém me perguntar sobre a peça quando eu estiver na rua, direi: é tudo muito lindo, é tudo muito emocionante. E tudo já estará dito.

Adassa Martins, Fernando Nicolau e Fernando Marques formaram um trio de peso para dar vida a um texto que merece toda a atenção do mundo. Junto a eles, Ilessi, responsável pela preparação vocal, também merece aplausos, pois seu trabalho permite a utilização da voz da atriz das mais diferentes formas, alcançando uma margem de timbres necessária às caracterizações, às vezes agudas, outras guturais, dos personagens tão bem compostos por Adassa.

Interessantíssima é também a pausa, que certamente foi inserida a partir da última semana, após a extinção do Ministério da Cultura pelo presidente interino: a atriz explica que a pausa é um protesto contra essa extinção e em defesa da democracia. Certamente uma pausa que se inseriu a partir dessa segunda temporada, da semana passada para cá. Ou então, se já estava antes em defesa da democracia (não vi a temporada do Sesc Tijuca), tem um acréscimo, com a menção ao decreto que decepou o MinC  tanto quanto uma serra decepa um ‘pinguelo’, um tronco, uma árvore, tanto quanto a força policial, medida em termos vagos e não menos terrível por isso, decepa todas as casas de todas as famílias de uma aldeia e sabe-se lá o que acontece depois com aquelas vidas.

Fica difícil falar mais sem estragar o espetáculo, mas é importante enfatizar a originalidade das soluções dramatúrgicas para algumas das representações do monólogo, como a mãe e o bebê, ou a linguagem por ela utilizada para explicar a gênese do mundo (a interlíngua desenvolvida pela própria atriz, como híbrido que se origina da língua portuguesa e da língua indígena – a concretização de um diálogo possível através da própria linguagem falada), ou a bela imagem formada por luz e olhos que abre o espetáculo e que o finaliza. Se eu fosse Iracema é uma peça de força, que denuncia a violência, que rompe com os discursos óbvios, que ironiza, através de analogias, os absurdos em voga. Que lança luz sobre culturas inteiras massacradas, ofuscadas. É um espetáculo em defesa da democracia e da cultura, obrigatório nestes tempos mais do que sombrios.

FICHA TÉCNICA

Dramaturgia: Fernando Marques
Direção: Fernando Nicolau
Elenco: Adassa Martins
Iluminação e cenografia: Licurgo Caseira
Figurino e caracterização: Luiza Fradin
Trilha sonora original e desenho de som: João Schmid
Assistência de direção: LuCa Ayres
Direção de arte e projeto gráfico: Fernando Nicolau
Escultura do busto: Bruno Dante
Caracterização: Luiza Fardin
Fotografia: João Julio Mello (Imatra)
Produção executiva: Clarissa Menezes
Realização e produção: 1COMUM
Idealização: Fernando Nicolau e Fernando Marques

SERVIÇO

Espetáculo: Se eu fosse Iracema
Temporada: De 14 de maio a 6 de junho de 2016.
Local: Galeria Marcantonio Vilaça – ECM Sérgio Porto
Endereço: Rua Humaitá, 163 – Rio de Janeiro
Informações: (21) 2535-3846
Dias e horários: Sexta, sábado e segunda, às 20h. Domingo, às 19h.
Capacidade: 20 pessoas
Duração: 60 minutos
Classificação indicativa: 16 anos
Gênero: Drama
Ingressos: R$20 (inteira) e R$10 (estudantes e idosos)

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