O texto de Machado de Assis é sempre um prazer de ler e ouvir. ‘Pai contra mãe’ é mais um de seus contos geniais, que parte e gira em torno da escravidão e do ofício de buscar escravos fugidos em troca de recompensas, para, como de praxe no autor em pauta, alcançar conflitos que independem de contexto, cultura ou condição, ou que se aproveitam de contexto, cultura e condição para se tornarem ainda mais interessantes.
Machado atualiza conflitos psíquicos de grande interesse a partir de problemáticas terríveis macrossociais. É sua habilidade em entrelaçar o geral e o particular, o macro e o micro, o social e o individual, o psíquico e o coletivo, é sua destreza em unir enredo com personagens, história e reviravoltas à cultura e suas determinações mais gerais o que faz de Machado de Assis o grande autor que é. Essa é a genialidade sempre presente em sua obra e que Alexandre Mofati, ator e idealizador, leva aos palcos do Teatro II do Sesc Tijuca, no espetáculo ‘Escravos’, que aproveita o texto na íntegra, sem adaptação.
O monólogo parte dos instrumentos de tortura e punição aos negros fugidos, tal como o texto original, trazendo os objetos descritos no conto machadiano e os apresentando um a um. O impacto de tais objetos em cena, como apetrechos de uma aula expositiva de História, cava importante presença na dramaturgia da peça, sobretudo em se tratando da grotesca máscara de ferro que impede o escravo de beber. Essa máscara, o ator a coloca em si mesmo, aproveitando bem os tempos e o ritmo para que a imagem de um ser humano sem rosto, aprisionado, possa reverberar na plateia. Essa falta de pressa em apresentar esses terríveis objetos e o trabalho da iluminação de Renato Machado são ótimos momentos da dramaturgia de Escravos.
No parágrafo abaixo, algum spoiler…
A partir daí temos o personagem Cândido Neves, Candinho, que não se adapta a nenhum tipo de ofício, não perdura em nenhum trabalho e precisa sustentar a família e um filho que está por vir. Aluguéis atrasados, mobília velha, despejo, a tia de sua esposa pressionando-o para colocar a criança que irá nascer na Roda dos Enjeitados, tudo isso empurra Cândido Neves para uma luta final que o colocará em pé de igualdade, malgrado as distâncias sociais, culturais e de gênero gritantes, à escrava que perseguirá. Junta-se, portanto, uma introdução que situa o leitor/espectador no contexto histórico em que o enredo acontece à história particular de Candinho e sua angústia de homem sem saída e sem meios de sustentar a família. Trata-se de um anti-herói terrível, abominável, mas movido por dramas profundamente humanos.
A direção de Augusto Madeira é correta, e a cenografia e o figurino, assinados por Carlos Alberto Nunes, ilustram e povoam o texto com curiosidades, em termos instrumentais, que por si só já fazem a peça valer a pena, e há um belo texto final na voz em off de Elisa Lucinda. No entanto, em alguns momentos, a trilha e o som parecem excessivos, e poderiam dar mais espaço à interpretação do ator e ao trabalho de luz. A impressão de que essa trilha tenta direcionar a sensação de suspense, suscitá-la nos momentos certos, trouxe algum incômodo, talvez por desviar a atenção da interpretação e do texto. Um ajuste na dosagem do som (e seu volume) tornariam sua presença menos invasiva no espetáculo.
E, por outro lado, um ponto que me chamou muita atenção no espetáculo, e que me fez sair com uma pergunta insistente martelando na cabeça, foi o que teria levado à escolha da mudança do título para ‘Escravos’. Porque, se se trata de um conto que aborda e trabalha a questão da escravidão e os problemas raciais que até hoje perduram, como não poderia deixar de ser em um país que aboliu tardiamente a escravatura, o que torna o conto genial é exatamente o conflito psicológico que se atualiza no encontro final que dá título ao texto, e que ganha uma dimensão mais enriquecedora, profundamente complexa, exatamente por ser tratar do contexto escravocrata. É o tal entrelaçamento já apontado no início desse texto, algo que parece tão fácil de ler e acompanhar no texto de Machado de Assis que pode levar à falsa impressão de que é igualmente fácil de elaborar.
A peça, no entanto, é muito mais sobre o pai, aquele pai, contra a mãe, aquela mãe, sobre os conflitos de Candinho que se avolumam e chegam ao clímax na cena final, e que Mofati interpreta muito bem nesse momento, e as repercussões desse embate derradeiro, do que sobre a escravidão em si. Logo, a mudança de nome acaba sendo uma perda para o espetáculo. Porque quando acabamos de ler o conto de Machado é que o insight de seu título torna tudo ainda mais incrível na literatura realista de Machado de Assis.
Ficha Técnica
Autor (Conto): Machado de Assis
Direção: Augusto Madeira
Atuação: Alexandre Mofati
Direção de Movimento: RAFAELA AMADO
Cenário e Figurino: Carlos Alberto Nunes
Iluminação: RENATO MACHADO
Foto: RAFAEL BLASI
Direção de Produção: ANA PAULA ABREU e RENATA BLASI
Produção: DIÁLOGO DA ARTE PRODUÇÕES CULTURAIS
Idealização do Projeto: Alexandre Mofati
Realização: Ofício Produções LTDA.
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