LTDA. – Um olhar dramatúrgico sobre os golpes de sorte midiáticos

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Uma agência jornalística, com dois sócios, um homem e uma mulher, está prestes a contratar um recém-formado em jornalismo que aguarda na sala de espera, com uma funcionária da empresa, que serve o café. Esse é o mote inicial do espetáculo LTDA., com direção de Debora Lamm, dramaturgia de Diogo Liberano e atuação de Brisa Rodrigues, Brunna Scavuzzi, Leandro Soares, Lucas Lacerda (que também assina a direção de produção) e Orlando Caldeira, todos do Coletivo Ponto Zero. Não há temática mais atual, como se pode acompanhar com o desenrolar da peça, uma vez que seu cerne é a relação entre a manipulação midiática de fatos e seus desdobramentos políticos, sociais e culturais. A notícia, a reportagem, o jornalismo são também mercadorias quando o contexto é o modo de produção capitalista. Nada escapa à lógica da mercadoria e da mais-valia, embora Marx não seja citado no texto da peça (não precisa: afinal de contas, ele está em tudo, tacitamente, mesmo que não se saiba).
Acompanhamos o recém-formado, Edmilson, de sua entrevista inicial e a emoção de fazer planos com o primeiro salário, como a iminência de poder trocar o miojo por alguma refeição mais consistente, até sua possível derrocada moral, seus questionamentos éticos quanto a fazer parte de uma agência que se diz neutra mas que parece estar bem longe da neutralidade: o lucro é o que se visa com a produção de notícias que ajudarão na venda desse ou daquele produto. O que está em jogo é a produção e a divulgação de reportagens, a partir das quais se forja uma visão de mundo que dita comportamentos e colabora na construção de representações sociais acerca de doenças, de hábitos, de partidos políticos, de celebridades etc.
A dramaturgia de Diogo Liberano imprime dinâmica e movimento durante todo o espetáculo, cujo início é uma cena impactante que já captura o espectador de imediato: quatro pessoas dançando freneticamente, sob a iluminação estroboscópica que não permite que vejamos seus corpos com detalhes e que parecem captar só os instantes desconectados de uma continuidade que os ligue a uma história e a uma relação. A cena, além de ótima do ponto de vista imagético, parece sintetizar a peça inteira: eles não se relacionam durante a dança, cada um dança por si, não há contato nem mesmo visual entre eles, e é frenético, agitado, como se juntassem bolhas elétricas e as colocassem juntas dentro de um retângulo, sem que nenhuma influencie a outra em nada, ao menos do ponto de vista afetivo. E não é disso que a peça trata, ao fazer a crítica do individualismo movido a lucro e ganância, onde os valores éticos não parecem ter lugar na fila dos elementos cruciais da vida social? A diferença em relação à cena da dança é que a cada escolha acrítica e sem ética que fazemos há um impacto específico sobre o próximo, sobre a cidade, sobre o território comum em que todos caminhamos e habitamos.

Além dos quatro personagens da agência de notícias, há um quinto que exerce uma figura híbrida de narrador, diretor e personagem, tentando dirigir os movimentos, as cenas, os quadros, mas opinando também aqui e ali e se afetando pelos rumos daquilo que se desenrola no palco. É ele que fará a fala final, carregada de força e talvez das mais importantes e atuais de toda a peça, fazendo menção à morte de pessoas negras e à da vereadora Marielle Franco, morta em março último, no Rio de Janeiro.
A peça é, portanto, claramente e antes de qualquer coisa, política: referências à situação do país, à guerra que polariza dois lados em relação aos rumos da política nacional, ao monopólio midiático que influencia opiniões e pensamentos, tudo isso é trabalhado cenicamente de um modo estupendo. A peça se posiciona e aponta uma questão séria: as narrativas que se criam sobre os fatos ao nosso redor e nos quais estamos imersos são construídas pela mídia e servem a um propósito, mudando rumos de países e atuando nos jogos eleitorais de um modo inegável, mesmo que não seja evidente a todos. Se as notícias fizerem você acreditar que o problema do seu filho agitado é uma doença em nada relacionada com o contexto familiar, você corre ao médico para obter o diagnóstico de Transtorno de Hiperatividade e Déficit de Atenção e passa a comprar o remédio caro que a indústria farmacêutica tem a oferecer. Se, por outro lado, te fizerem acreditar que agora as donas de casa estão podendo comprar mais, em entrevistas com freguesas simpáticas e dedicadas à economia doméstica em redes de supermercado, porque enfim os preços dos produtos pararam de aumentar, você vai acreditar que o governo conseguiu aplacar a crise econômica. Se, finalmente, colocarem um juiz curitibano na capa de uma revista de grande circulação nacional alçando-o a herói que combate a corrupção de um único partido político, você vai acreditar que a corrupção é só de um partido político, que esse partido se trata de uma quadrilha e que esse juiz sabe o que faz. Os exemplos se multiplicam sem fim, mas o ponto central é que não há democracia sem uma mídia diferenciada, comprometida com a ética, que esteja ciente da ideologia que a move mas que coloque isso na pauta de seu trabalho, que seja heterogênea e não hegemônica, que comporte perspectivas diversas sobre fatos e incentive a dialética. Não há democracia sem isso, mesmo que de quatro em quatro anos um país vote para presidente, governador e cargos legislativos.
Em resumo, LTDA. faz coro conosco ao dizer que houve golpe e que ele é, em grande medida, midiático.

Ficha Técnica

Dramaturgia: Diogo Liberano
Direção: Debora Lamm
Direção de Produção: Lucas Lacerda
Elenco: Brisa Rodrigues, Brunna Scavuzzi, Leandro Soares, Lucas Lacerda e Orlando Caldeira
Direção de Movimento: Denise Stutz
Criação Sonora: Marcelo H
Figurino: Ticiana Passos
Visagismo: Josef Chasilew
Iluminação: Ana Luzia de Simoni
Cenário: Debora Lamm
Assistente de Direção: Junior Dantas
Assistente de Figurino: Brisa Rodrigues
Assessoria de Imprensa: Ney Motta
Programação Visual: Daniel de Jesus
Fotos de Divulgação: Ricardo Borges
Making Off: Mika Makino e Tatiana Delgado
Marketing Digital: Eddesign – Maria Alice Edde
Produção Executiva: Geovana Araujo Marques
Assistente de Produção: Julia Kruger e Naomi Savage
Gestão Financeira: Carlos Darzé e Lucas Lacerda
Realização: Coletivo Ponto Zero

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