O mar conjuga narrativas. A prosa sobre o mar e seus moradores nos apresentou a comovente história de Herman Melville sobre a vingança do Capitão Ahab contra Moby Dick. E Ernest Hemingway escreveu sobre juventude e velhice, coragem e persistência, sobre a luta que se deve ter consigo mesmo em O Velho e o Mar. Talvez seja que as maiores lutas sempre acontecem lá, no mar. E é nesse contexto que Melka Barros engendra o seu Memórias da Travessia.
A advogada cearense estreia com uma obra que imerge-se no cenário das comunidades costeiras, narrando a história de um personagem que conduzido ao descanso eterno. Ali, como Brás Cubas, ele recorda a sua vida, suas vivências e as pessoas de seu cotidiano na pequena localidade litorânea de Beijupirá. Naquele caixão de madeira, vestido de branco vai lembrando do cenário passar por profundas mudanças, numa prosa carregada de sentimentos pelas experiências vividas e suas reflexões..
Gestado durante a pandemia, o romance traz mais do que memórias de um personagem de ficção, mas a intensidade das estórias, da cultura, das crenças e hábitos das comunidades pesqueiras do Nordeste, no caso do Ceará. A própria autora, descende de pescadores, e em entrevista a um jornal, disse que o enredo nasceu de um conto, que veio de um desejo antigo de desenvolver uma narrativa na qual pudesse apresentar a resistência e o encantamento da vida nesse cenário litorâneo.
Com um olhar crítico, o livro composto por três capítulos e um posfácio assinado pela jornalista e pesquisadora em História Social, Monyse Ravenna, abordando a memória desse protagonista em vários momentos de sua vida. Apesar da estrutura simples do romance, como também é O Velho e o Mar, a autora traz uma linguagem clara, refletindo sobre algumas de nossas preocupações mais universais, como a luta por um direito, a lealdade ou a morte.
Narrado em primeira pessoa, Memórias da Travessia conta como esse personagem chegou na praia de Beijupirá, nos anos 1970, após um naufrágio. E daquele momento trágico vai entrando na vida dos moradores do lugar, nos passando detalhes sobre o dia a dia e os episódios pitorescos que vivencia, além das duras transformações do turismo no local. O olhar da autora nessa ficção, a leva para sua própria vivência, como defensora de direitos humanos, atuante na defesa do território e do bem-viver de pescadoras e pescadores.
Recorrendo às suas memórias, a autora se reconecta com seu passado, assim como seu personagem, acolhendo o que Melville e Hemingway fizeram em seus romances, a tenacidade de resistir, de proteger, de lutar por algo seu. E nesse caso específico, temos o desafio encontrado contra o poder do capitalismo em comunidades litorâneas, fincando além da premissa central da narrativa a interpretação perante a ocupação desordenada e predatória de nossas praias, que destroem em muito as comunidades tradicionais, o interesse dos mais jovens pelo passado e pela preservação do local, como do preconceito que silencia tantas vozes.
A travessia pela vida do narrador com suas memórias faz da estreia de Melka Barros na literatura um presente, indo além do valor de denúncia e da resistência, mas pela representatividade de um pedaço do Brasil, com seus dramas humanos em meio a tramas do poder econômico. A perspectiva das memórias desse homem está a intensidade de várias outras pessoas que sonham e resistem antes de sua última travessia.
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