“Um Nazista em Copacabana” tem o escritor como microscópio da contemporaneidade

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Uma das principais características da boa literatura é tomar para si a conjuntura política, social e econômica de determinado período e analisá-la a partir do microcosmo de uma situação ficcional. É o ofício do escritor como microscópio, a ferramenta que amplia a perspectiva de reflexão e do conhecimento, a partir da análise minuciosa de um fragmento do horizonte urbano.

Por outro lado, quem persegue esse caminho deve manejar com cuidado a amostra de realidade que tem em mãos; o exagero do acontecimento e/ou o excesso de transgressão dos personagens pode tornar a situação inverossímil ou grotesca, e, ao contrário, a falta de “pecado”, lembrando o conselho de Luis Fernando Verissimo no exemplar “O jardim do diabo”, pode deixar a história pueril, incomodamente inocente e sem relevância ao leitor. Por isso é sempre muito agradável quando um escritor faz um trabalho bem feito, com domínio do tema e sem excessos ou ausências dos personagens, como no caso do jornalista Ubiratan Muarrek em seu novo livro “Um nazista em Copacabana” (Editora Rocco, 2016).

Com narrativa harmônica, bem estruturada, e momentos de humor e ironia, o autor persegue o Brasil contemporâneo nas duas gerações familiares de Otto Funk, um ex-combatente da Segunda Guerra que havia decidido abandonar o conflito exilando-se na Argentina, mas que não contava se apaixonar por Iracema, uma manauara no Rio de Janeiro, e com ela ter uma filha chamada Diana Verônica. São elas, a filha e a mãe, junto com a amiga Circe, o núcleo inicial da narrativa. Em diálogos que muito lembram Nelson Rodrigues, Muarrek nos apresenta o cotidiano das moradoras do Flamengo alterado pela gravidez de Diana.

Aos poucos notamos a tendência ao exagero e ao alcoolismo de Iracema, as poucas palavras de Diana, grávida de um homem que ela resolveu apagar da memória e que acredita estar envolvido em um caso de sequestro em São Bernardo do Campo, e os mistérios de Circe, uma mulher mais velha lembrada por seu pouco tamanho, que parece nutrir sentimentos lascivos por Diana. Otto Funk, o nazista, permanece oculto, presente nas memórias da mulher e da filha, mas contribuindo com a construção do caráter e as tomadas de decisões das personagens.

Isso talvez estranhe o leitor menos preparado ou que aguarde descrições e segredos extensos da Segunda Guerra. Fica claro que a história é sobre o futuro, não sobre o passado. Otto é o gatilho (para usar um termo bélico) que desencadeia a história, mas o livro é sobre sua descendência: a esposa, agora viúva, que rememora os dias felizes com o ex-marido enquanto beira o alcoolismo, e a filha, desnorteada com o fato de ser mãe solteira enquanto é desejada por dois homens violentos e corruptos. Esta, por sinal, a outra face do livro: a corrupção.

Com a mesma propriedade que desenvolve as situações cotidianas iniciais, Muarrek transporta o leitor para o ambiente luxuoso e sedutor de um figurão que vai ajudar o prefeito de São Bernardo do Campo em um grande projeto urbano que envolve desapropriação de áreas carentes. É por meio desse trabalho que conhecemos melhor Delúbio, filho de um funcionário do cartório e companheiro de Diana no passado.

Ficamos sabendo que quando os dois moravam juntos na cidade paulista, ele foi chamado para participar desse projeto com um salário astronômico – o que desencadeou violência, mortes, corrupção e fuga da mulher para o Rio de Janeiro, o mesmo caminho que a mãe dela tomou com o pai décadas antes. Aqui percebemos os ecos, as engrenagens que se repetem por circunstâncias diferentes e que são objeto de reflexão para isso que chamamos de vida. Este o outro ofício da boa escrita: a experiência da empatia.

Outra coisa que chama atenção é o extenso vocabulário utilizado pelo autor. A diversidade e precisão de palavras conseguem animar as cenas do livro. Isso, em conjunto com a condução da narrativa, diversidade, empatia e presença do pecado, tornam “Um nazista em Copacabana” uma ótima novela ficcional, dessas que podem ser lidas enquanto a história ganha a imaginação e a curiosidade é alimentada até o desfecho da trama.

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