O espetáculo As criadas, dirigido por Eduardo Tolentino e montado pelo Grupo TAPA, fundado em 1974 no Rio de Janeiro, traz para o palco do teatro da Maison de France o texto clássico da dramaturgia francesa, de Jean Genet, escrito em 1947, com inspiração em um caso real, em que as irmãs Papin mataram a patroa e sua filha em 1933, na França.
É interessante pensar sobre o título da obra de Genet e o distanciamento dos dias atuais, uma vez que o termo ‘criada’, para denotar o que hoje chamamos de empregado doméstico ou funcionário, já causa certa estranheza, assim como o texto carrega esse anacronismo. A expressão indica uma servidão que já não é cabível no contexto de direitos sociais e dos trabalhadores, sobretudo no Brasil, onde, ainda que as desigualdades sociais sejam evidentes, ocorreram, nos últimos anos, mudanças nas leis que regem as profissões e os direitos sociais de empregados domésticos, que, até então, não pareciam ser trabalhadores como qualquer outra categoria profissional.
O texto de Genet, traduzido aqui por Pina Coco, já é interessante por evidenciar esse tipo de relação social e psicológica (este último adjetivo é o que caracteriza, de fato, o enredo do espetáculo) em um tipo de interação patronal que vem sofrendo tantas mudanças ao longo dos anos. Mas é exatamente dessa relação de servidão e submissão, e suas nuances psicológicas e relacionais, que o texto se apropria e em torno da qual irá girar.

As criadas Clara e Solange encenam entre si um jogo de humilhação e constrangimento, fazendo uso das roupas de Madame quando esta se ausenta de casa, apropriando-se de objetos pessoais, joias, maquiagem, e executando papeis e personagens em seu quarto, retratado pelo cenário de Marcela Donato, que enfatiza o luxo e a riqueza – e, tacitamente, a discrepância de privilégios – através de vestidos suntuosos pendurados e espelhos diversos, onde as criadas podem, recorrentemente, se ver refletidas.
A encenação das criadas, quando a madame está fora, reproduz de modo quase infantil o jogo de forças que se dá na rotina de vida e trabalho das personagens, como forma de controlar uma situação indesejada (tanto quanto crianças brincam de situações em que reproduzem as relações familiares e repetem ocorridos ruins). Como são criadas e seu aspecto de submissão é total, elas não têm vida própria, seu tempo é todo entregue aos cuidados com a casa e com Madame, elas estão inteiramente à disposição daquela que nelas manda, a não ser nos momentos do jogo.
O elenco, composto por Clara Carvalho, Mariana Munis e Emilia Rey – criadas e Madame – dá vida a essa interpolação de papeis entre oprimido e opressor, dado que as criadas devem assumir a posição da Madame e repetir a humilhação por esta causada, mas repetindo o seu comportamento. A interpretação aqui tem de dar conta das personagens e da simulação de uma outra personagem, o que não é fácil. Ao mesmo tempo, as criadas planejam a ruína de Madame, usando o artifício de incriminar seu amante, tornando o jogo perigoso e a ponto de ser descoberto.

Não se trata, portanto, de texto fácil, nem de personagens psicologicamente rasteiros, dado que há uma constante confusão entre o eu de cada uma delas, que ora se confundem, ora se encontram, em seus diferentes papeis. A um só tempo, elas odeiam o tratamento que recebem, mas também invejam a posição social e o poder de Madame, almejando suas conquistas e status. A repetição e a encenação para si mesmas do comportamento execrado não deixa de transitar em fronteira tênue entre o deleite e o horror, sendo esse ritual a forma única que encontram de alcançar o status de Madame. No entanto, entre elas, as irmãs, Clara e Solange, os sentimentos são também ambivalentes e flutuam.
Pelo fato de essa relação oprimido-opressor não ser algo evidente nos dias de hoje, há também um distanciamento temporal que torna o texto ainda mais difícil. Com os direitos sociais, o politicamente correto, os engajamentos políticos e a visibilidade das lutas sociais, mesmo que se quisesse agir da forma como Madame age, isso seria mais difícil de ganhar chão atualmente. O texto é psicologicamente denso, mas seu anacronismo parece torná-lo distante.
No caso da montagem do Grupo TAPA, o recurso de uma escada portátil na qual Madame sobe, ou as criadas, quando se passam por Madame, ajuda a evidenciar a relação de poder e dominação que se concretiza na diferença de nível em que cada um dos personagens se encontra, como no filme O grande ditador, de Chaplin, em que o ditador deve estar em uma cadeira mais alta e em um nível superior àquele em que se situava seu interlocutor, marcando a diferença de poder existente na relação.
Um destaque deve ser dado para a beleza da cena final, no que se refere à estética da composição de imagem e música, além do cenário que se mescla ao figurino. O esmero da cena se expressa na beleza do quadro que se forma para a finalização do espetáculo, o melhor momento da peça.
FICHA TÉCNICA
Texto: Jean Genet
Tradução: Pina Coco
Diretor: Eduardo Tolentino de Araujo
Elenco: Clara Carvalho, Mariana Muniz e Emilia Rey
Cenários e Figurinos: Marcela Donato
Iluminação: Nelson Ferreira
Fotos: Ronaldo Gutierrez
Comunicação Visual: Gus Oliveira
Produção Executiva: Ariel Cannal
Realização: Grupo TAPA
Assessoria de Imprensa: JSPontes Comunicação – João Pontes e Stella Stephany
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NÃO CONCORDO. O ESPETÁCULO É BRILHANTE E A SUBMISSÃO NÃO ESTA APENAS NOS CRIADOS, ELA ESTA EM TODA A SOCIEDADE.