Nascido na Transilvânia, numa família de retalhos romena, húngara e alemã, E.O. Chirovici, surpreendeu com o seu “O livro dos espelhos”. O título foi a sensação da Feira de Frankfurt de 2015, dois anos antes de chegar às livrarias, e foi vendido a peso de ouro para editoras em 38 países. Publicado por aqui pela Record, o livro me atraiu pelo quebra-cabeça que traz consigo.
Histórias que envolve policiais, crimes, mistério e suspense, no estilo dos clássicos de Agatha Christie, Raymond Chandler e Dashiell Hammet sempre trazem uma fórmula pronta, de sua maneira, em descobrir quem é o assassino. Mas o que faziam “E não Sobrou Nenhum”, “A Dama do Lago” e “O Falcão Maltês” de diferente? O modus operandi, cada autor tinha um forma especial de construir a sua história, Agatha intrincava com um enredo bem técnico, Chandler e Hammet desenvolveram um cenário urbano em meio a rede de crimes, capangas durões, policiais corruptos, femmes fatale… Acredito que faltava nesta década um exemplar que seguisse essa mesma linha, mas que de sua maneira, contribuísse para emoldurar sua narrativa ao thrillers de sucesso.
E o romeno Chirovici traz em seu livro uma peculiar narrativa que gerou crítica e público. Vamos tratar dela, em suma, O Livro dos Espelhos é uma boa novela. E independente de modas, gêneros favoritos, aplausos ou críticas, é uma narrativa honesta, direta e bem escrita, lembrando muito Jane Auster, pela cadência narrativa que o autor gasta, tão natural, que faz pensar que escrever é tremendamente fácil.
Narrada por quatro personagens diferentes, a trama começa na voz de Peter Katz, um agente literário que recebe por email o trecho de um manuscrito intitulado “O livro dos espelhos”. O autor se chama Richard Flynn e, no texto, relembra um período de seus dias na faculdade, no fim dos anos 1980. Na segunda parte, lemos o manuscrito de Flynn, que narra a relação entre ele, uma amiga da faculdade e Joseph Wieder, um renomado psicólogo. Wieder foi brutalmente assassinado naquela época; um crime que ficou famoso mas jamais foi solucionado. O trecho enviado para Katz termina exatamente nas horas anteriores ao assassinato. Curioso e convencido de que o manuscrito vai enfim revelar o assassino – e garantir um contrato milionário com uma editora – Katz vai atrás de Flynn, mas ele está em coma, à beira da morte, num hospital. E ninguém sabe onde está o restante do original.
O agente então contrata John Keller, um repórter investigativo, para desenterrar o caso e reconstituir o crime. Na terceira parte, acompanhamos a investigação de Keller, cujas entrevistas e pesquisas revelam um verdadeiro jogo de espelhos, uma trama complicada em que verdades e mentiras nem sempre são absolutas. No fim, um quarto personagem consolida o desfecho da história. Mais do que escrever um suspense ou uma simples trama policial para descobrir um assassino, Chirovici constrói uma narrativa intrincada, literária e elegante, onde fala sobre como as memórias, a realidade e a verdade podem ser relativas.
Como podemos ver no resumo acima, O livro dos espelhos é um thriller de mistério que começa com a promessa de um manuscrito. A história que se narra é centrada a uma série de personagens que tentaram desenterrar a verdade sobre um ocorrido célebre e trágico de 1987. Deste modo, o livro se vértebra em partes, com diferentes pontos de vista, que, sem dúvida, um dos grandes acertos dele. A maneira fragmentada de situar a narrativa, dando enfoques diferentes, dá ao título um patamar bem maior do que um livro de mistério. Ele aprofunda a subjetividade individual, a busca eterna da objetividade e é um conto espetacular sobre a memória e seus estragos.
Marcel Proust já dizia que as lembranças de coisas do passado não são necessariamente lembranças de como elas eram, e, precisamente, nesta tese é que sustenta a narrativa de Chirovici. A memória pode ser manipulada, tanto externamente como por nós mesmo; também podemos perdê-la de repente e não encontrá-la mais; e a ausência dela que nos fala O livro dos espelhos. Ao longo do livro, como uma espécie de compêndio sobre o assunto, aparecem exemplos de quanto são importantes, como também são volúveis são nossas lembranças: desde o garoto que perdeu a memória por uma trauma ao ancião com alzheimer. Chirovici faz um retrato incrível da memória como uma dualidade frágil e poderosa como uma entidade.
Por outro lado, a linguagem de mistério e suspense é bem dinâmica, carregadas de reviravoltas densas e dinâmicas, que fluem como um redemoinho. Natural, franca e bastante sensível e que me surpreendeu. Além disso, a narrativa descritiva do autor torna a leitura fácil ler as pouco mais de 300 páginas. A maneira descritiva não aborrece e está bem justificada no desenvolvimento da história. A tradução de Roberto Muggiati ajuda muito em tornar a leitura do início ao fim uma delícia.
O resultado é um livro que joga com os conceitos de ambição e memória e que garante seu lugar no halll de bons thrillers. Recomendo.
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