O Livro do Juízo Final por Connie Willis – um sci-fi sobre o passado, mas que reflete no presente

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“Para Kivrin, que se prepara para um estudo de campo em uma das eras mais mortais da história humana, viajar no tempo é tão simples quanto tomar uma vacina ― desde que seja uma vacina contra as doenças encontradas na Idade Média. Já para seus professores, isso significa cálculos complexos e um monitoramento constante para garantir o reencontro. No entanto, uma crise de proporções inimagináveis pode colocar o futuro de Kivrin, e de todo o Reino Unido, em perigo. Seu professor mais próximo, o sr. Dunworthy, fará de tudo para resgatá-la. Mas até que ponto é possível desafiar a morte?”

Análise

A narrativa leva nos a uma ucronia divergente do nosso passado mais próximo. Em um momento indeterminado dos finais do século XX, o desenvolvimento tecnológico nas comunicações telefônicas, não deu o salto que tivemos, não tendo a avassaladora irrupção dos smartphones e tablets, mantendo só os avanços da telefonia principalmente nas videochamadas com dispositivos fixos – existem os celulares, mas não no número atual.

O Brexit nunca ocorreu, porque no presente 2054, grupos são vistos nas ruas na defesa da saída do Reino Unido da Comunidade Europeia; e embora uma pandemia tenha assolado o mundo, foi de curta duração.

O Livro do Juizo Final é uma corrida árdua contra uma enfermidade e seus contratempos, e nesse ponto, o exemplo claro de que se algo pode dar errado, vai piorar.

Com este livro, a autora, Connie Willis, abriu sua série Oxford Time Travel, à qual pertence também a excelente Fire Watch, apresentando aqui uma história de viagem no tempo ao século XIV, intercalada com um relato quase catastrófico de epidemias e quarentenas num futuro mais ou menos próximo.

Willis oferece uma ficção científica mais social do que tecnológica — o mecanismo científico da viagem no tempo, com suas regras para sua realização e ajuste, não é explicado, por exemplo—, a narrativa segue mais preocupada com o retrato preciso da Idade Média do que com um início consistente da segunda metade do Século XXI.

Atinge o objetivo, envolvendo o leitor de forma imersiva em uma história de sofrimento, dor, raiva, esperança no desespero humano, fragilidade e força.

No ano de 2054 as viagens no tempo são uma ferramenta para estudar o passado. Na faculdade de História, uma nova reitoria assume; após o desaparecimento do titular, que tem o intuito de abrir as viagens para o século XIV, marcado até então como perigoso.

A empreitada é feita, com uma estudante enviada ao ano de 1320, apesar das opiniões contrárias. Tudo parecia correr bem, mas uma epidemia se espalha no futuro, enquanto no passado, a jovem terá que superar obstáculos inesperados em meio a um surto de uma estranha doença.

A narrativa em terceira pessoa, segue a estudante no passado; e no futuro, seu tutor, que não concordava com a viagem para aquele período. Duas linhas temporais que se desdobram; paralelas e refletindo uma à outra, em um Natal ligeiramente alterado nas datas específicas devido às discrepâncias entre o calendário juliano e o gregoriano.

A autora para dar ao leitor mais informações, como também mais verniz dramático, inclui entre os capítulos e períodos algumas gravações em primeira pessoa da voz de Kivrin Engle, graças a um gravador que foi enxertado em seu corpo. Um dispositivo que a ajuda como forma de fuga, que nos apresenta seus pensamentos/descobertas em uma espécie de diálogo unilateral bem interessante.

Um magnífico trabalho de investigação sobre o período medieval; Willis oferece uma visão que retifica certas «verdades» sobre aquela época; não esconde uma realidade de situações angustiantes, doenças, casamentos arranjados, superstições ou mortes prematuras, mas onde também há espaço para alegrias, celebrações, sonhos e pequenos prazeres.

“E, para que coisas que devem ser lembradas não sucumbam no tempo (…)”

A autora detalha meticulosamente sua narrativa, o que faz em certos momentos a ação não avançar tão rápido, mas ambienta perfeitamente a história. Sem abuso da exposição, e sim um habilidoso uso da descrição para mostrar o que esta acontecendo. Uma narrativa engenhosa, na medida, com personagens realistas; com arestas e conflitos internos; virtudes e defeitos; imperfeitos, decentes, mentirosos, covardes, egoístas, fracos, encantadores e odiosos.

Não temos um épico, com batalhas e outras apoteoses do gênero; mas uma história sobre heroísmo, de confrontar a doença, de reconstrução e seguir em frente, sem vacilar, diante de tanta adversidade. Tensão que não permite descanso, ao mesmo tempo arrebatador, dramático e comovente.

Sendo a linha medieval mais sombria, no futuro, Willis inclui temas, que podemos sentir com a atual pandemia, como a importância de rastrear e identificar os contatos dos infectados; a pressa necessária para sintetizar uma vacina após descobrir o que é o vírus, a complexidade de descobrir sua origem e proveniência, o uso continuado de EPIs, ou os negadores da epidemia.

O Livro do Juizo Final é um livro comovente que carrega em seu final um misto de tristeza e satisfação. Pode ser uma leitura um tanto lenta; mas esse ritmo é necessário para tanta tensão e; sem um vilão além da mesquinhez humana, a narrativa é envolvente.Para quem quer ler uma ficção sobre compaixão, sacrifício pessoal e coragem para cuidar dos enfermos sem saber se o próximo será o mesmo, sobre ver a luz escondida nas trevas e a beleza por trás da sujeira, talvez seja uma leitura  mais necessária agora do que nunca.

Crítica: Excelente: 3 de 5 estrelas.

Cadorno Teles
WRITTEN BY

Cadorno Teles

Cearense de Amontada, um apaixonado pelo conhecimento, licenciado em Ciências Biológicas e em Física, Historiador de formação, idealizador da Biblioteca Canto do Piririguá. Membro do NALAP e do Conselho Editorial da Kawo Kabiyesile, mestre de RPG em vários sistemas, ler e assiste de tudo.

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