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“Prisão nos Andes” e o ciclo da truculência à beira da Cordilheira

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Mais de quarenta anos após o golpe no Chile, quando houve o assassinato do presidente Salvador Allende e Augusto Pinochet tomou o poder, cinco homens envolvidos com os crimes da ditadura cumprem pena perpétua numa prisão à beira da Cordilheira dos Andes. Cercados por regalias, além de poderem sair vez ou outra para visitarem suas famílias, estes criminosos não têm do que reclamar. Mas logo surge assunto para reclamação quando um deles dá uma entrevista e a má repercussão faz com que as regalias dos presos comecem a ser retiradas.

Os guardas da prisão são também prisioneiros, por não poderem deixar o local com a exceção de uma folga de tempos em tempos. Como a prisão fica num local isolado, eles dormem e fazem suas refeições em alojamento anexo, bem como são treinados ali mesmo. Além de Navarrete (Andrew Bargsted), assoberbado por pedidos dos presos o tempo todo, destacam-se dois guardas que são um casal e cujo romance fica ameaçado pela ordem de transferência dos cinco detentos. Uma pena que o relacionamento deles fique não em segundo, mas praticamente em terceiro plano.   

É montada uma verdadeira operação de guerra para que os presos sejam transferidos, uma vez que o deslocamento até a outra prisão pode ser acompanhado de manifestações e da cobertura abútrea da imprensa. Para eles, a mídia é inimiga ao mesmo tempo em que pode ser manipulada, tanto é que se juntam para escrever uma carta aberta à imprensa. Como nas demais ditaduras do meio do século XX na América Latina, no Chile também houve censura e perseguição da imprensa.

Um flashback do encontro de um dos presos com Pinochet é sabiamente construído como um filme mudo e em preto e branco, com cartelas de texto com os diálogos e embalado por uma música ao piano. Além de tecer um comentário sobre os caminhos da memória, essa sequência faz um paralelo, talvez não intencional, com o filme “El Conde”, também filmado em preto e branco, que traz Pinochet como um vampiro chupador de sangue de suas vítimas.

O discurso do entrevistado em seu depoimento em vídeo nós conhecemos bem por o termos escutado muito em tempos recentes: ele não torturou ninguém, só castigou os comunistas que queriam que o Chile virasse uma nova Cuba. Não é feita, e nem deveria, uma humanização destes monstros que respondem por crimes contra a humanidade – e que têm como passatempo recitar detalhes de torturas e de suas vítimas. Apesar de tantas semelhanças com o Brasil, o Chile puniu seus torturadores, mas isso não impediu que a onda neofascista fosse surfada também por lá: por pouco um candidato de extrema-direita não chegou à presidência em 2021. Entretanto, a extrema-direita e suas fake news impediram a aprovação de uma Constituição mais democrática que substituiria a Constituição vigente desde a época de Pinochet.    

Permitindo a convivência e treinamento com um encarcerado, o que acontece é que se preparam recrutas não humanizados, truculentos como quem os treina. Para o Brigadeiro preparador do exército, o corpo humano é “uma máquina que é obra de Deus e está a serviço da pátria”. Outro dos detentos diz aos advogados que foram os militares que construíram o país e que o seguem guardando – e que no dia em que os militares pararem de cuidar do país ele se encherá “de negros, de traficantes, de bichas, de terroristas”. Soa familiar?

Numa sequência perto do final, os presos são vistos comendo como animais, literalmente dispostos a “não largar o osso”. Torturadores condenados, agora sem regalias, finalmente transferidos da prisão que mais se assemelhava a uma casa de repouso de luxo para aqueles idosos que não tinham nada de adoráveis. A cadela do fascismo está sempre no cio, e para abortar seu embrião é preciso cortar o mal pela raiz. É preciso que o cinema nos lembre que truculência gera truculência. Ainda bem que existe o cinema para fazê-lo!

Prisão nos Andes

Prisão nos Andes
7 10 0 1
Nota: 7/10 Ótimo
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