Como sempre, a programação do Festival de Arles contou com: retrospectivas de fotógrafos super cultuados; (re)descobertas de clássicos pouco conhecidos; mostras coletivas de artistas de outros países; curadorias convidadas; prêmios para jovens fotógrafos e um espaço para artistas contemporâneos.
Mas este ano, particularmente, as mulheres tiveram um peso importante nas escolhas.
Um exemplo disso, e dentro da categoria de retrospectivas clássicas, foi a fotógrafa americana Mary Ellen Mark, conhecida por seu amplo trabalho documental. A mostra se concentrou sobretudo na parcela de sua obra dedicada a fotografar um extrato marginalizado da sociedade. Jovens adolescentes grávidas; uma família que vivia em condições precárias e da qual resultou uma de suas imagens mais icônicas; mulheres presas em um hospital psiquiátrico; prostitutas indianas; gangues em bairros perigosos…
Mary tinha sensibilidade para retratar pessoas em situação de vulnerabilidade com respeito e compaixão. E, em muitos destes casos, ela acompanhava seus retratados ao longo dos anos e das reviravoltas de suas vidas. Ela dizia: “Eu quero que minhas fotografias sejam sobre os sentimentos e emoções básicas que todos nós temos”.
Outras duas mulheres bastante importantes no mundo da fotografia recente e que também marcaram presença foram Cristina de Middel e Sophie Calle.
Cristina apresentou seu trabalho entitulado “Journey to the Center” (Viagem ao Centro), na belíssima e ampla Igreja des Fréres Précheurs. Nele, a artista se inspira em aspectos estruturais e atmosféricos do livro de Julio Verne, “Viagem ao Centro da Terra”, para trazer histórias e personagens (fictícios e reais) ligados às trajetórias de migração na América Central.
Por anos, Cristina visitou localidades próximas à fronteira entre México e EUA e conversou com habitantes, migrantes, atravessadores e policiais. Ao adaptar o livro de aventuras de 1864 para falar deste universo, ela decidiu retratar os migrantes como heróis em busca de seus sonhos e capazes de tudo para alcançá-los, um pouco como os filmes hollywoodianos fazem com seus protagonistas. Um detalhe que reforçou esta aproximação foi o uso de trilhas sonoras épicas típicas do cinema americano no espaço expositivo.
A artista espanhola, que vive atualmente no Brasil, é diretora da prestigiosa Agência Magnum e faz parte do recente movimento da Fotografia de misturar registros documentais com imagens de arquivo e outras construídas, na tentativa de fornecer múltiplas camadas de leitura de assuntos que, como este, fazem parte de um fenômeno complexo e comumente explorado de forma simplória pela mídia.
Neste projeto, ela junta elementos alegóricos, estereótipos e imagens que ressaltam a beleza das paisagens mexicanas para dar um tom mítico a este universo. Por outro lado, apresenta aspectos estapafúrdios que ressaltam o seu caráter irônico, absurdo e trágico destas narrativas.
No caso de Sophie Calle, um acontecimento casual de sua vida lhe estimulou a propor a exposição “Neither give nor throw away” (Nem dar, nem jogar fora). Após uma grande tempestade em Paris ter inundado o depósito onde a artista guardava as obras referentes ao seu conhecido trabalho “The Blind” (Os cegos), e de especialistas lhe dizerem que ela teria que destruí-los devido ao caráter tóxico de sua inevitável e subsequente decomposição natural, a artista decidiu fazer um último ritual com estas imagens.
Ao lembrar do gesto do artista Roland Topor que, por não conseguir doar nem descartar, acabou por enterrar um velho casaco que carregava grande valor afetivo, Sophie encontrou nos escuros e úmidos espaços do cryptoporticus de Arles o local ideal para dar, pela última vez vida (e visibilidade), a suas imagens.
O som abafado que propicia eco e o clima frio do subterrâneo trouxeram um clima sombrio e sagrado à experiência. “Os cegos”, para quem não conhece, é composto por uma série de trípticos de imagens e textos que trazem retratos de pessoas cegas, relatos dos mesmos por escrito em torno do que consideram belo e imagens que representam estas descrições.
Foi bastante interessante ver como a artista foi capaz de ressignificar sua perda iminente e como o espaço potencializou a leitura do trabalho.
Ainda no trilho das mulheres, uma das mais belas mostras do Festival foi “I’m so happy you are here” (Estou tão feliz que você esteja aqui), dedicada a fotógrafas japonesas em ação dos anos 50 para cá.
A coleção trouxe ao público a oportunidade de conhecer o trabalho de 26 artistas: Hara Mikiko (1967), Hiromix (1976), Ishikawa Mao (1953), Ishiuchi Miyako (1947), Katayama Mari (1987), Kawauchi Rinko (1972), Komatsu Hiroko (1969), Kon Michiko (1955), Nagashima Yurie (1973), Narahashi Asako (1959), Ninagawa Mika (1972), Nishimura Tamiko (1948), Noguchi Rika (1971), Nomura Sakiko (1967), Okabe Momo (1981), Okanoue Toshiko (1928), Onodera Yuki (1962), Sawada Tomoko (1977), Shiga Lieko (1980), Sugiura Kunié (1942), Tawada Yuki (1978), Tokiwa Toyoko (1930-2019), Ushioda Tokuko (1940), Watanabe Hitomi (1939), Yamazawa Eiko (1899-1995) and Yanagi Miwa (1967).
Esta mostra faz parte de um esforço contemporâneo de preencher certos buracos históricos dos espaços expositivos e da cultura fotográfica que sempre privilegiou homens brancos eurocêntricos e que, mesmo quando sai um pouco desta configuração, acaba por valorizar o trabalho de homens em geral.
A combinação entre os diferentes trabalhos traz um panorama de linguagens e temas diversos – entre observações do dia a dia; perspectivas críticas em relação à sociedade japonesa e seus papéis enquanto mulheres; e experimentos com a forma fotográfica.
Uma outra mostra que também focou em fotógrafas japonesas foi “Transcendence” (Transcendência). As 6 artistas (Hosokura Mayumi, Iwane Ai, Okabe Momo, Suzuki Mayumi, Tonomura Hideka and Yoshida Tamaki) trazem abordagens intimistas e experimentais para tratar da complexidade da cultura japonesa contemporânea.
O festival segue até dia 29 de setembro.
Para saber mais sobre as artistas e sobre a programação, acesse o site https://www.rencontres-arles.com/en.
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