Por causa de uma onda de nostalgia ou por pura falta de criatividade – você escolhe – a verdade é que Hollywood vem apostando em reboots: novas versões de séries antigas, algumas com elenco original e respeitando em parte a história já construída – como Will & Grace e Veronica Mars – e outras partindo do mesmo princípio, mas com mudanças substanciais na trama – como One Day at a Time e Perry Mason, que traz o advogado mais sagaz da televisão com roupa nova e muitas questões, pessoais e profissionais, a resolver.
Um crime brutal acontece nos últimos dias de 1931: um bebê sequestrado é devolvido aos seus pais, após o pagamento do resgate, sem vida e com os olhos costurados para ficarem permanentemente abertos. A notoriedade do caso faz com que a polícia se sinta pressionada para prender logo um culpado. Nesse cenário, um milionário que frequenta a mesma igreja dos pais da jovem vítima decide agir e contrata uma equipe de investigação particular, da qual faz parte o complicado detetive Perry Mason (Matthew Rhys) e seu “sócio” Pete Strickland (Shea Whigham).
Ao mesmo tempo em que a polícia se sente pressionada, a equipe de investigação liderada por E.B. Jonathan (John Lithgow) quer resolver o caso o mais rápido possível, causando conflitos entre Mason, com seus métodos investigativos pouco ortodoxos, Jonathan e a secretária Della Street (Juliet Rylance), contratada por Jonathan “apenas para atender telefone”, nas próprias palavras dele, mas que acaba se envolvendo com o caso ao passar um tempo acompanhando a mãe do menino, Emily (Gayle Rankin). Della é a única personagem que mostra um pouco de empatia por Emily e não a julga de antemão.
Como membros de uma igreja e protegidos de um de seus fundadores, os pais da vítima conseguem que o funeral seja feito no grande templo da congregação, resultando em um megaevento que mexe profundamente com a pastora do local, irmã Alice (Tatiana Maslany). Alice é marionete de sua ambiciosa mãe, Birdy (Lili Taylor), que para manter a aura de respeitabilidade se refere à filha como “irmã” mesmo quando não estão na igreja.
A igreja de Alice e Birdy é estranha – e estranhamente familiar. Espetáculos são montados para os fiéis, com encenações, milagres e encenações de milagres. Entretanto, Birdy prefere abandonar uma ovelha desgarrada a ajudá-la, afinal, salvar todo o empreendimento que é a igreja e o plano de futuras filiais é mais importante que resgatar um ser humano. Para tornar a administração clerical ainda mais complicada, a calculista Birdy vai aprender, da pior maneira, que ela e a filha podem ser as pedras fundamentais da igreja, mas são os homens que tomam as decisões sem consultá-las.
Todo o elenco tem performances sensacionais, com destaque para Gayle Rankin como Emily, mãe da vítima e ocupante do banco dos réus. Merece elogios também a diretora Deniz Gamze Ergüven, que dirigiu três episódios. Por trás das câmeras também estão os produtores-executivos Robert Downey Jr e sua esposa Susan Downey. Robert estava escalado para o papel principal quando o reboot foi pensado pela primeira vez, em 2016, mas com o passar dos anos preferiu ficar apenas nos bastidores.
Alguns espectadores mais sensíveis podem se incomodar com os vários cadáveres presentes na tela a cada episódio. Quem também se sentiu muito incomodado foi quem esperava um Perry Mason como o de Raymond Burr, lá dos anos 50, e se deparou com a nova versão atormentada, mas não por isso menos interessante. E a prova de que as mudanças não prejudicaram o interesse pelo novo Perry Mason é que uma segunda temporada já foi confirmada pela HBO.
As várias faces e fases de Perry Mason
Perry Mason surgiu nos livros de Erle Stanley Gardner em 1933 e seus casos já foram adaptadas para o rádio, o cinema e a TV. A série literária é a terceira mais lida na história. Perry Mason surge já como advogado, e é assim que ele se apresenta na série de televisão exibida entre 1957 e 1966, na qual foi interpretado por Raymond Burr. Burr voltou a interpretar o personagem em 26 filmes feitos para a TV entre 1985 e 1993, quando faleceu. A versão de 2020 seria, por isso, uma “prequel” ou história de origem de um dos mais sagazes advogados da ficção.
Vários acontecimentos são retirados diretamente dos anos 1920 e 1930. Na primeira vez em que vemos Perry Mason, ele está seguindo o comediante Chubby Carmichael para obter evidência fotográfica do mau comportamento do ator. Chubby é uma referência clara ao escândalo que envolveu o comediante Roscoe “Fatty” Arbuckle no início da década de 1920. Irmã Alice é claramente inspirada na pregadora Irmã Aimée Semple McPherson, que já havia servido de inspiração para o filme A Mulher Miraculosa, feito pelo cineasta Frank Capra em 1931. Outros elementos da época presentes na série são a proibição da venda de bebidas alcoólicas e a crise econômica.
Assim, de certa maneira, a nova produção de Perry Mason serve como um espelho daquele tempo, mas traz também situações que poderiam ter acontecido hoje. O reboot traz assuntos incrivelmente atuais, e mostra que, ao contrário do que a maioria imagina, a humanidade não evoluiu tanto nas últimas décadas.
Sendo assim, uma mudança brilhante da série foi fazer do detetive Paul Drake, presente desde o primeiro livro de Gardner, um policial negro. Logo no primeiro episódio em que ele aparece, dois oficiais brancos desprezam a informação dada pelo policial Drake (Chris Chalk) e zombam dele por ser negro. A segregação racial é fortíssima, mas sabemos que não ficou no passado – tanto é que, na série de Perry Mason dos anos 50, foram necessárias três temporadas até que um personagem negro tivesse uma única fala.
Jonathan diz a Emily uma dolorosa constatação: às vezes, a verdade não importa se o poder do Estado, representado aqui pelo promotor de olho em um cargo político, já resolveu condenar o réu. Perry Mason diz também que a verdade não importa se não for possível prová-la – ou, para adaptar a frase aos nossos tempos, se ela for provada para um júri que não se importa com a verdade.
O que ressoa em especial na atualidade é uma frase repetida algumas vezes durante a série: “existe o que é legal, e existe o que é correto”. Dita numa ocasião por uma personagem lésbica que precisa esconder seu amor na Los Angeles de 1932, mais tarde a frase é repetida pelo próprio Perry Mason, a frase pode ser vista como um incentivo à busca incessante por justiça – ou, de maneira mais simples, uma celebração da capacidade de Hollywood de contar histórias que, mesmo desagradando alguns, valem a pena ser contadas por sua atualidade.
Cotação: Épico (5/5 estrelas)
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