Numa tarde de um feriado, assistindo o filme da animação de Henry Selick com minha filha e vendo o quão ela gostou da história. A vontade de reler o livro de um dos maiores criador de histórias da atualidade, Coraline de Neil Gaiman (Sandman, Neverwhere, Stardust. Peguei minha edição de 2003 da Rocco e comecei a ler para minha padawan esse conto de fadas às avessas que reconhece a subestimada e, por vezes esquecida, maturidade da maioria dos leitores menores.
Em Coraline, Gaiman encara pela primeira vez o desafio de escrever uma fantasia assustadora para as crianças e vai além dos tradicionais dragões, príncipes encantados, frágeis princesas ou gigantes padronizados que habitam esse universo, criando uma personagem com a qual as crianças podem facilmente se identificar. Uma história destilada entre a fantasia e o terror, mesmo que tenha sido desenvolvida a um nicho de leitores, é de uma leitura aberta a qualquer idade, que mostra a facilidade com que Gaiman é capaz de idealizar pequenos mundos combinando aspectos da realidade mais cotidiana com inquietantes ambientes imaginários. Não era a primeira vez que o autor britânico se envolvia com esse público. O Dia em que Troquei Meu Pai por Dois Peixinhos era bem mais infantil, enquanto em Coraline adotou uma perspectiva da infância que claramente se aproxima da visão dos adultos.
Assim, aproxima o leitor às dúvidas, aos medos, à incompreensão e as perguntas próprias da protagonista que luta para superar os temores, sem esquecer das ocupações e dos hábitos do que se chama crescer e que padecemos a medida que tornamos adultos. Pela maneira de equilibrar esse plano de leitura, já merece qualquer recomendação, especialmente para aqueles pais com filhos nessa fase de de descobertas do todo e da curiosa forma de raciocinar como a vivaz Coraline se encontra na história.
Em pouco mais de 150 páginas, estruturadas em treze capítulos, Gaiman nos introduz na história de uma mocinha que se muda com seus pais a um enorme casarão dividido em vários apartamentos e compartilhado por outros vizinhos: as peculiares senhoras Spink e Forcible do primeiro piso, com seus cachorros e o velho excêntrico que mora no ático. Durante os últimos dias de verão, enquanto espera o início das aulas, Coraline encontra na casa e no seu enorme jardim todo um novo marco de oportunidades que dará renda a suas fábulas.
O tédio e a falta de dedicação de seus pais, sempre ocupados em suas rotinas, despertou na garota um caráter curioso e explorador, o que leva a vasculhar todo aquele ambiente novo. Porém alguns dias de chuvas seguidos atrapalham aquele entretenimento, levando a focar sua ânsia exploradora para dentro do casarão. E assim, encontra uma estranha porta fechada, numa parte vazia da propriedade e ao descobrir que uma estranha chave encontra um reverso de sua casa, a surpresa maior há também uma versão de seus pais, idênticos, exceto pelo detalhe “mínimo” de ter botões pretos no lugar dos olhos. Uma vez ali, onde seus lanches favoritos são melhores, as brincadeiras parecem mais divertidas e ninguém se aborrece com ela, Coraline se pergunta se o comportamento daquele lugar não responde a algum interesse sinistro.
A esta garota de nome original se associam referências e homenagens a Alice no País das Maravilhas de Lewis Carrol; como também um relutante gato -sem botas- incluído, como uma versão moderna do conto clássico. Usando a relação paterno-filial, no caso da mãe, uma figura protetora por excelência é o elemento condutor do medo converte Coraline em uma narrativa claustrofóbica com poucos ingredientes como cenário e sem estender em páginas desnecessárias, Gaiman constrói uma história tétrica como distorção da realidade, ajudado neste sentido pelas ilustrações deformadas de Dave McKean, colaborador já habitual em suas obras.
A produção animada de Selick e a adaptação em quadrinhos, realizada por P. Craig Russell, que a Rocco publicou também por aqui, além dos jogos eletrônicos para distintas plataformas e consoles, fizeram a narrativa ficar mais conhecida. Premiada com o Hugo e o Nebula Award de melhor novela de 2003 e o Bram Stoker Award de melhor trabalho de novos escritores em 2002, Coraline, sem dúvida, é uma narrativa bastante eficaz para o público infanto-juvenil. Minha filha de 8 anos, trouxe o encanto da leitura desse já clássico conto. Uma história para aqueles que perderam durante o caminho da maturidade, uma certa capacidade de imaginação e como é bom ter a capacidade de apreciar este momento com sua filha. Recomendo a leitura, a releitura e a leitura compartilhada.
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