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Vagando entre Mundos: O universo de Darkest Dungeon

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Esse artigo não contém spoilers. Para ter a experiência completa, jogue o game!

O que vem depois da sensação entorpecente que uma vida em opulência e luxúria pode fornecer? Há algum sentido além da riqueza ou do poder? E quando um homem deseja mais do que a própria humanidade pode fornecer, a quem se deve incorrer? Se você fizer essas perguntas e achar que a resposta está no subterrâneo dos seus pensamentos, seja bem vindo ao universo de Darkest Dungeon.

 Introdução

O game começa com uma intro-cutscene misteriosa, na qual um velho nobre afirma que apesar de toda sua fortuna, sua vida só teria sentido se fosse possível ir mais fundo em seus desejos, que no caso dele é a obtenção de conhecimento. Coincidentemente, ou não, no subterrâneo de sua mansão, construída na ponta de uma escarpa, o velho nobre descobre que reside um enigma obscurecido pelas brumas do tempo, e descobri-lo torna-se uma obsessão.

Gastando todas as suas posses, ele contrata mineiros para escavarem túneis que alcançam o fundo daquele abismo de escuridão, onde encontram um portão de estrutura colossal; a entrada para o desejado enigma. Perdido em avidez por obter o conhecimento ali esquecido, o velho nobre abre o portão, mas o que vê lá dentro o faz correr em desespero, abandonando todos seus contratados, que nunca mais retornam. Esbaforido e solitário, ao alcançar de novo a superfície ele escreve a carta que dá início a toda a jornada do protagonista, seu herdeiro primogênito, pois pede que ele retorne ao lar o quanto antes, para impedir o quê acordou lá embaixo de subir à superfície.

Ao fim da cinemática, a imagem de um revólver e o som de um disparo supõe que o velho atirou contra a própria cabeça, perdido em insanidade ou pior. A mansão do nobre, antes vislumbre do poder humano, agora se tornou a constatação da decadência: a Darkest Dungeon.

Tendo lido a carta, o protagonista viaja numa carruagem o mais rápido que pode, levando consigo dois heróis contratados, e ruma direto para a aldeia próxima da mansão de seu parente, onde o game começa por definitivo. A partir dali, aos poucos vai ficando evidente os feitos maléficos e egoístas do velho nobre, conhecido como Ancestral. As consequências de seus atos vão para além do que qualquer um poderia imaginar, e ao longo das aventuras e superações dos desafios fica claro que por trás de toda aquela ambição, havia um mistério ainda maior.

A cada incursão numa masmorra com Chefão, a voz do Ancestral que viaja junto ao protagonista, esclarece que as pessoas sacrificadas, criaturas evocadas e mentiras contadas foram parte de um plano maior, que envolvia até mesmo a chegada do protagonista. Ninguém ali estaria a salvo.

Aspectos & Características

Com poucos minutos de gameplay, percebe-se que não foi o objetivo do Red Hook Studio (estúdio desenvolvedor do game) explorar um storyline denso e cheio de reviravoltas. Muito pelo contrário, aqui a narrativa é esparsa e apenas complementar as mecânicas do gameplay. Então porque avaliá-lo narratologicamente? Dois são os quesitos-chave para a diminuta, porém eficaz narrativa de Darkest Dungeon: o Modelo Narrativo (storytelling) e o Sistema de Moralidade.

Apesar do game conter uma fraquíssima narrativa embutida e exatamente nenhuma narrativa ambiente, o quê viria bem a calhar numa obra com cenários tão lindos e bem detalhados, essa falta foi suprida necessariamente pelo Modelo Narrativo usado. Numa construção narrativa existem vários modelos que podem ser explorados para adequar uma história dentro de um game, devido a uma série de exigências do game design, e no caso do Darkest Dungeon não é diferente.

Por ser um game assentado em uma combinação visualmente inovadora de alto fator replay, mais o uso de mecânicas TBS (Turn-based Strategy), a narrativa adequada seria aquela que apoiasse tangencialmente o gameplay e incutisse subjetivamente, ao mesmo tempo, a narrativa embutida no jogador, a fim de manter sua atenção completamente focada, sem desgaste do flow. Para tamanha empreitada, o modelo narrativo escolhido foi um que sustenta toda a responsabilidade em cima de um voice actor onisciente que acompanha o protagonista, muito comum em walking simulators, como: Dear Esther, The Beginner’s Guide ou Gone Home.

Wayne June é o excelente voice actor que dá voz ao Ancestral, personagem que narra os estados psicológicos dos heróis todo tipo de intriga por trás de cada masmorra, monstruosidade e missão. Sua narração permite que o jogador não se perca na periferia dos símbolos, para se manter atento apenas naquilo que é narrado/explicado, enquanto joga. Algo conveniente, pois aqui a narrativa é meramente uma ajudante do gameplay, infelizmente. O game por si só já possui a vantagem de ser constituído de mecânicas intuitivas e um fluxo de jogo contínuo, o quê edifica uma ainda maior imersão mecânica, em detrimento à narrativa. Definitivamente, a pobreza de profundidade narrativa em Darkest Dungeon é atestável quando se joga repetidas partidas e se perde vários heróis, concluindo em espaços vazios que são substituídos por outros, o quê o assemelha muito com arcade games.

Para quem já jogou Teenager Mutant Ninja Turtles IV, Battletoads in Battlemaniacs ou Super Double Dragon nos fliperamas, sabe que é a persistência a chave do sucesso, e não estratégias ou reconhecimento da história embasada (que em alguns desses games praticamente não existe), pois entre uma horda de inimigos e o seu personagem deve existir a atenção na capacidade de obter habilidade no game antes de todas as vidas se esvaírem. Darkest Dungeon cria a mesma sensação, ao transformar seres humanos, os heróis, em fichas de jogo infinitas, para que caso o jogador as perca, bastasse apenas substituir a equipe morta por uma nova e continuar a jornada. Tudo muito simples… e psicopata. Entretanto, isso é o que há de mais interessante na narrativa do game, tanto para o bem, quanto para o mal.

Em termos ludológicos, essa experiência psicótica é altamente gratificante e amoral, tendo em vista, por exemplo, que não nos importamos com a quantidade de vezes que matamos o Mario no dificílimo Super Mario World, para Super Nintendo; e deixemos claro que isso realmente não importa, pois não devemos atrelar ideologias a games, como fazem com GTA, pois no mínimo é uma desonestidade intelectual. No entanto, quando analisamos em termos narratológicos é importante descobrirmos quais mensagens ou marcas, intrínsecas e extrínsecas ao jogador e ao universo do game, estão presentes. Não entremos aqui na natureza semiótica desse efeito, mas analisemos um exemplo de mensagem conceitual deixada pelos desenvolvedores no game, que tem tudo a ver com o motivo da escolha do dado Modelo Narrativo e da evidente supressão do storyline, e que chamo de Conceito da Predicção Moral.

No início do artigo foi falado que são dois os quesitos-chaves para constituição da narrativa em Darkest Dungeon, e agora falaremos do segundo: o Sistema de Moralidade. A moralidade em Darkest Dungeon é tudo, basicamente, e sem ela o game seria irrelevante, bastando apenas destreza estatística e administração dos atributos, personagens e poderes em cada masmorra. Sem a moralidade não teríamos a demonstração dos status mentais e emocionais dos personagens com cada interação dentro das masmorras, o quê desqualificaria também o papel do Ancestral em narrar os acontecimentos para dar margem ao entendimento narrativo do jogador; tudo está conectado a moralidade em Darkest Dungeon.

Mas será que entender isso é chegar mais próximo da vitória, assim como entender as regras num arcade game? Com certeza não. Apesar da pobreza narrativa de Darkest Dungeon, que limita sempre a percepção do jogador ao tempo presente, sem dar brechas aos acontecimentos passados e futuros de uma dada masmorra, Npc ou da vila (a não ser pelas descrições iniciais do Ancestral nas masmorras com Chefões), os desenvolvedores decidiram trabalhar num sistema de jogo que afunilasse as ações do jogador para que aos poucos, preocupado e sem fundos para bancar incursões nas masmorras, ele começasse a perder sua sanidade, e consequentemente a humanidade dentro do game. Esse sistema prediz que a gradativa perda de humanidade alicia o jogador a enviar qualquer herói para as masmorras mais fáceis, a fim de apenas obter dinheiro, o que ocasiona num gameplay desatencioso e a fatal morte de mais uma dúzia de heróis; que são substituídos por mais outros heróis, criando assim um ciclo sangrento de abate.

Tudo isso apenas para tentar continuar com a missão principal do game: alcançar a Darkest Dungeon, que simboliza a própria insanidade materializada. Ou seja, o Conceito da Predicção Moral foi programado para saber que, tendo criado um terreno viável para a loucura do jogador, bastaria apenas fornecer as ferramentas para a sua manifestação voluntária.

Por isso, apesar de semelhante mecanicamente a games como Child of Light (turn-based strategy + side-scrolling), ou Ori and The Blind Florest (side-scrolling + platform), Darkest Dungeon se diferencia porque tem um nexo baseado na padronização e linearidade, o quê permitiu a proceduralização dos cenários, o amplo fator replay e o não desgaste do gameplay, mas também a ampla exploração de recursos narrativos que leva o jogador a momentos aleatórios, os quais os desfechos podem ser os mais variados possíveis.

Essa é a prova cabal de que a Narrativa Embutida é apenas um enfeite para a amplitude de possibilidades da Narrativa Emergente em Darkest Dungeon, o quê corrobora o uso de um narrador “simplifica tudo” e clarifica a maravilha que é no aspecto da interatividade. No entanto, a característica mais importante da narrativa é que o narrador tem um papel maior do que o de apenas descrever reacionariamente a cena: ele é o próprio criador da história, como se o game fosse uma metáfora para um livro lido por ele, no qual o jogador é meramente alguém invisível, assim como realmente é no game, um leitor ou ouvinte de uma história de terror! Ou seja, o jogador poderia ser irrelevante e seus atos presos numa imutabilidade cósmica.

Ademais, outro ponto interessante de avaliar, agora apenas como complementar a narrativa, é a sua presença subjetiva na arte do game. Os artistas Chris Bourassa e Brooks Gordon, ilustrador e animador respectivamente, deram vida aos cenários de maneira única, construindo até mesmo um estilo de game art muito original, mas com forte inspiração no Hellboy de Mike Mignola. O estilo, caracterizado por uma composição de tons de baixa saturação e luminosidade, combinados com um matiz sempre tendendo para o cinza/vermelho/amarelo e dando ênfase nos traços de obscurantismo da anatomia dos personagens – no qual todos os humanos sãos do game têm olhos assombreados, por exemplo – instiga o inconsciente do jogador a catalisar os efeitos sinestésicos das masmorras, de pavor e tensão constantes, e ajuda a incutir a insanidade no jogador; a missão do game.

O estilo gótico-estressante da arte de Darkest Dungeon justifica totalmente o conceito de narrativa entre traços visuais, para expressar de maneira cirúrgica o teor desumano dos acontecimentos jogados. Cada uma das masmorras possui um conjunto único de assets e é construído em camadas, representado por salas, para acompanhar o teor insano de cada aventura. Esse estilo grita em silêncio, mas fala através do Ancestral, na derradeira frase: “Bem vindo ao lar… esse vilarejo esquálido e terras corruptas; elas são suas agora e você está preso a elas”.

Conclusão

Com um Sistema de Moralidade afiado de uma maneira que supera até mesmo, no quesito interatividade mecânica, alguns bons rpg’s old school’s, Darkest Dungeon mostra que é possível fazer fantasia e realismo numa mescla gótica incrível, que evoca desde a temática desumana de Solomon Kane até os traços sombrios de Hellboy. Sem perder para This War of Mine, o game trás a tona um outro lado da moral, explorada através de um sistema que alcança a realidade e manipula o próprio jogador. Claro que a fraquíssima abordagem narrativa e a superficial exploração do Lore faz com o que o game perca seu poder após vários replays, mas pode ser dito que o game explora mais as experiências tidas nas masmorras, do que realmente contar uma história épica, apesar deles terem tentado.

No final, fica claro que o objetivo principal do game não é salvar a humanidade do mal que está prestes a sair da mansão do Ancestral, e sim, anunciar a mensagem de que esse mal já está livre há milênios e caminha silenciosamente pelo coração dos próprios seres humanos, que jogam seus companheiros na morte e na loucura apenas por dinheiro, glória e poder. Isso é comum da raça humana? Será que fomos feitos para a destruição e um dia retornaremos a destruição? Só nos resta dizer, enfim, que ruína chegou a nossa família.

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