Há algum tempo a Caixa Cultural Rio de Janeiro promoveu um festival que tinha como foco filmes baseados em obras literárias. Essa questão de pegar uma história originalmente contada em uma plataforma ocupada exclusivamente pela palavra escrita e transportá-la para a tela grande dos cinemas é sempre muito curiosa; tanto de fazer como de prestigiar. Esse festival, que tive o prazer de conferir, foi realizado antes mesmo de alguns cinemas corajosos se aventurarem em exibir uma obra audiovisual tão apoiada na palavra – aqui falada – como é o caso de “O Natimorto”.
O filme é baseado no romance homônimo de Lourenço Mutarelli que também assume o papel de protagonista. Atuar não é necessariamente uma novidade para Mutarelli. Na adaptação de outra obra sua, “O Cheiro do Ralo”, que contou com Selton Mello no elenco, o escritor interpretou o segurança do estabelecimento do personagem central da trama.
A história gira em torno de um homem que interpreta os avisos nos versos das embalagens de cigarro qual cartas de tarô. A cada novo maço comprado no início da manhã, ele crê que a mensagem ali contida será o prenúncio do que acontecerá no dia que se inicia.
Quase em sua totalidade, a trama se desenrola dentro de um quarto de hotel para onde o personagem de Mutarelli, um caça talentos, leva a cantora vivida por Simone Spoladore para esperarem pelo dia de apresentá-la a um maestro que não chegamos a conhecer. Engana-se quem pensa que algo mais carnal acontece entre os dois. Em algumas partes isso até é levantado e o espectador – síndrome do final feliz – fica no aguardo de uma cena caliente.
Por ter grande parte de suas cenas concentradas em um só cenário, temos quase a impressão de um teatro filmado – o livro também tem uma versão para os palcos –, característica potencializada pelas conversas de cunho introspectivo entre os dois personagens. Apesar de um casal pouco convencional temos um casamento interessante entre a beleza de Spoladore e a sensibilidade artística e a timidez de Mutarelli. Ambos se completam. Confesso que prefiro Lourenço no papel de escritor, mas nesse caso em particular, por ter sido ele a mente por trás do criativo argumento que deu origem à fita, o papel lhe caiu muito bem.
Outra relação que pode ser traçada em “O Natimorto” é com as histórias em quadrinhos, primeira morada artística de Mutarelli. Duas cenas em particular me levaram a imaginá-las preenchendo uma página única. Impossível não ver a cena onde o agente está deitado no chão coberto por baratas, larvas, gafanhotos e aquela onde o mesmo personagem se encontra todo encolhido na banheira e não associar ao universo da arte sequencial, ainda mais se conhecer a história pregressa do ator/autor ou autor/ator.
Como já dito anteriormente os diálogos imperam nesse trabalho que conta com a direção de Paulo Machline e roteiro de André Pinho. É sentar e se concentrar nas falas e pescar as sacadas que o agente desenvolve em seus devaneios com as advertências impressas nos maços de cigarro. É maduro e, o melhor, demonstra que a grana pode até auxiliar a desenvolver um bom trabalho para a sétima arte, porém, nada substitui uma boa história e uma equipe segura, coesa e que acredita no projeto que está ajudando a concretizar.
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