ESTA CRÍTICA TEM SPOILERS
Em um terço dos mais de dois mil quadros pintados pelo pintor francês Pierre Bonnard podemos encontrar sua musa, Marthe. Para além de pintada, ela também foi pintora, o que a torna objeto de interesse de nossos tempos, em que vemos mulheres artistas sendo redescobertas e recebendo o devido reconhecimento. É sobre Marthe que se joga uma luz no filme “A Musa de Bonnard”, mais novo trabalho do diretor Martin Provost.
Foi andando na rua que Pierre Bonnard (Vincent Macaigne) escolheu ao acaso a operária Marthe (Cécile de France) para posar para um de seus quadros. Do ateliê eles vão para o quarto, e assim começa um romance que parece destinado a um “felizes para sempre”. Ela serve de inspiração para as pinturas dele, e juntos vão morar numa casa à beira do rio Sena com seus cãezinhos. Ela, porém, não fala a verdade sobre quem realmente é.
Muitos anos se passam e eles continuam juntos. Entra em cena um terceiro elemento na relação, Renée (Stacy Martin), que também havia sido escolhida por Bonnard para posar para ele. À primeira vista, acreditamos que as duas mulheres dividirão de bom grado a atenção do pintor, mas Renée lhe dá um ultimato. Fugindo para Roma para ficar com ela, Bonnard desperta uma Marthe dormente: lidando com a perda, ela começa a pintar suas próprias gravuras.
Marthe sofre de asma e tem um coração fraco. Padece com os poucos recursos medicinais disponíveis em finais do século XIX e a ela o médico recomenda uma cura nas estações de águas termais. Na época, era muito mais comum que hoje ir buscar a cura nestas estações, tipo de turismo medicinal que enriqueceu regiões – como minha cidade natal, Poços de Caldas. Os balneários termais ainda atraem turistas, mesmo que em menor número. Águas com grande concentração de cálcio são particularmente benéficas para a asma que vitimava Marthe.
A história começa em 1893 – portanto durante a Era Vitoriana – e avança algumas décadas. Isso significa que o filme passa pela época da Primeira Onda do Feminismo, com a bem-sucedida luta das mulheres pelo direito ao voto, mas não faz menção a este fato histórico. O êxito de Marthe só ocorre, no filme, na década de 1920, mas já existiam mulheres artistas na Era Vitoriana, que ficaram décadas ocultas por causa de suas ligações com artistas do sexo masculino. Muitas eram classificadas somente como pupilas, assistentes ou, como Marthe, musas.
Para Renée, Marthe diz que um amigo do casal, Claude Monet, perdeu o filho na Primeira Guerra Mundial e logo depois ficou viúvo. Muito além de um mestre Impressionista, Monet deu nome ao movimento. Bonnard, por sua vez, foi Pós-Impressionista, sendo membro do grupo parisiense Les Nabis, que defendia que uma obra de arte não deveria ser mera cópia da natureza, mas sim uma mistura de metáforas e símbolos criados pelo pintor.
Num determinado momento, olhando para um quadro, Marthe pergunta “por que só as mulheres que posam nuas, e os homens não?”, ao que Pierre responde “porque são os homens que pintam, e não as mulheres”. Esse pequeno diálogo dá pano para a manga. Historicamente, as mulheres entraram nos museus e galerias como retratadas nas pinturas e não pintoras. A situação vem mudando aos poucos, mas substancialmente, nas últimas décadas. Um filme como “A Musa de Bonnard” – cujo título original é “Bonnard – Pierre e Marthe” – seria muito diferente se feito alguns poucos anos atrás, e que bom que ele chega para nós hoje.
Na Wikipédia em inglês, Marthe Bonnard tem um verbete composto por apenas dois parágrafos. Em vez de editar o verbete, Pierrette Vernon, sobrinha-neta de Marthe, procurou o cineasta Martin Provost com a ideia de fazer um filme sobre a antepassada ilustre. Sobre o pedido, Provost declara:
“Para ela, o papel de Marthe era fundamental no trabalho do marido e não foi suficientemente apreciado. Poderíamos dizer que Marthe se tornou o emblema e o fetiche disso, aparecendo em mais de um terço da obra do pintor. Mas ela permaneceu, para a opinião pública, uma pessoa perturbada e manipuladora, enquanto Pierrette via Marthe como uma mulher que sacrificou ela mesma pelo bem do trabalho de Pierre.”
No final do verbete de Marthe Bonnard, há agora um link para a página do filme na Wikipédia. Depois de assisti-lo, nos sentimos mais empoderados para falar sobre mulheres artistas em geral e Marthe Bonnard em particular. Ela finalmente encontrou seu lugar ao sol.
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