Há quem subestime a verdadeira relevância da música pop, e para esses, “A Música da Minha Vida” é um belo tapa com luva de pelica. A música produzida na segunda metade do século XX – sobretudo ali pelos anos 1960 e 1970 – surtiu tratados indeléveis que deram sentido a muitas vidas. Quando se ouve histórias em que o protagonista afirma “o rock me salvou”, certamente não é mero recurso poético. Se bem que é verdade que, no caso da história verídica que inspirou essa produção britânica, a poesia e a realidade se entrelaçam com uma simbiose tão irresistível que até demorou para virar filme.
Inglaterra, 1987. O adolescente britânico de origem paquistanesa e inclinação para escrita Javed Khan (Viveik Kalra) – alter-ego de Sarfraz Manzoor, jornalista, escritor e radialista cujo livro de memórias serviu de base para o roteiro – vive na cidade de Luton com sua família, chefiada por um pai dominador. Deprimido por sua vida familiar opressiva e sentindo que não tem futuro em uma comunidade hostil, um novo amigo apresenta Javed à música de Bruce Springsteen. Imediatamente ele é inspirado a alcançar seus próprios sonhos e a descobrir seus verdadeiros talentos. No entanto, o rapaz tem como principal barreira a difícil situação financeira familiar e o pragmatismo de seu pai recém-desempregado, que se recusa teimosamente a entender as novas aspirações de seu filho.
É certo afirmar que “A Música da Minha Vida” aproveita o embalo dessa nova onda de filmes com temática musical deflagrada por “Bohemian Rhapsody” e sedimentada com “Rocketman” e “Yesterday”. Ora inspirados em biografias, como os dois primeiros, ou focados em uma obra como o último (que girava em torno das canções dos Beatles), que é o caso desse aqui, alicerçado nas composições do The Boss, que servem de armas para o jovem enfrentar as vicissitudes da vida. Inclusive, o título original, “Blinded By The Light” é uma música do artista em questão (que, é claro, toca no filme), outro ponto em comum do longa com seus predecessores. Enquanto em “Yesterday” somos apresentados a um mundo alternativo em que apenas o protagonista conhece os Beatles, aqui a música de Bruce Springsteen, vista como ultrapassada em uma época na qual a garotada estava mais interessada em synth pop, afirma sua força e atemporalidade servindo instrumento de emancipação.
A diretora Gurinder Chadha que também assina o roteiro em parceria com Paul Mayeda Berges, proporciona uma deliciosa jornada rumo a um sonho, cheia de lirismo e bem cadenciada entre o humor e o drama, sendo a música de Springsteen o elemento catalizador, além de uma espécie de testemunha ocular. E esse conto de fadas movido a clássicos do herói de Nova Jersey é tão envolvente que mesmo deslizes da condução da trama – como o quase sumiço de Roops (Aaron Phagura) a certa altura, justamente o amigo responsável por apresentar a música a Javed; o recurso de usar trechos das letras em torno do personagem, que funciona muito bem para ilustrar o impacto da descoberta musical, mas não faz tanto sentido mais adiante – são minimizados pelos trunfos.
Podem ser citados como acertos os personagens coadjuvantes. Todos, sem exceção, têm seu papel no avanço da história e as transformações do protagonista, seja a fada madrinha, a professora de redação Senhorita Clay, ou o Senhor Evans que faz aparições pontuais dignas de Mestre dos Magos. Assim como são cativantes a namorada de Javed, Eliza, uma garota antenada e contestadora interpretada por Nell Williams (que apareceu na quinta temporada de Game of Thrones como a jovem Cersei Lanister), e o núcleo familiar do rapaz, com destaque para o pai. O patriarca, dá ao ator Kulvinder Ghir uma plataforma para provar toda uma versatilidade, transitando entre variados tons com incrível sutileza. Mas a trama não funcionaria sem um protagonista carismático, e o jovem Viveik Kalra se mostra uma escolha bastante acertada, apesar da pouca experiência. Isso é até um ponto que confere maior naturalismo à trajetória do personagem.
Por fim, “A Música da Minha Vida” é um muito bem-vindo feel-good movie – ok, previsível, mas o gênero clama pela zona de conforto sem sobressaltos – que presta um justíssimo tributo a Bruce Springsteen e seus clássicos (quem nunca quis sair saltitando pela rua cantando ‘Born to Run’ a plenos pulmões igualzinho aos personagens no filme?) e também a uma época em que a música não era abundantemente disponível nos streamings da vida, mas (talvez por isso mesmo) era absorvida com uma paixão e intensidade a ponto de transformar uma história de vida. E não há artista melhor para traduzir isso do que o chefão de Nova Jersey.
Cotação: Muito Bom
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