“Qual é o parasita mais resistente? Uma idéia.” No momento em que as luzes se acenderam na sala de projeção, pensei: Christopher Nolan é um gênio; mas não digo olhando para o sentido banal que a palavra genialidade ganhou nos tempos atuais. Nolan é de fato um gênio da sétima arte. O adjetivo se justifica talvez pelo plot brilhante e extremamente original, ou pela execução magistral de um mestre; entretanto, creio que não seja exatamente por isso. A história toda gira em torno de uma equipe que trabalha navegando pelos mares do subconsciente humano, extraindo idéias valiosas e as vendendo para poderosos industriais.
Eis que, por um infortuito, Cobb (Leonardo DiCaprio), o líder da equipe, vê em uma proposta assaz desafiadora sua volta para casa; sua cobiçada aposentadoria. A proposta? Ao invés de extrair uma idéia, ele deveria implantar uma. O procedimento para tal é chamado então, de Inception. O que muitos não perceberam, entretanto, enquanto tomados pela perplexidade diante de conceitos tão revolucionários, é que nós mesmos vivíamos em um sonho; e neste, Nolan era o próprio arquiteto. Experienciamos literalmente uma Inception. A idéia que nos foi implantada? Que A Origem é o melhor filme da década.
Diferentemente do que muitos esperavam, A Origem é um filme linear. Não temos múltiplas linhas narrativas exibidas em um recorte caótico, como no também fantástico Amnésia. Mas assim como sua história conta, a película exibe múltiplas camadas de interpretação, principalmente no que concerne o final. Antes de adentrar nas peculiaridades do roteiro, queria tecer alguns comentários acerca da história em quadrinhos oficial (ela pode ser lida gratuitamente aqui), que serve de prequel para o filme, entitulada The Cobol Job. O título faz referência a uma das empresas que persegue Cobb durante o longa, mas também à extinta linguagem de programação COBOL (do inglês, COmmon Business Oriented Language – Linguagem Orientada aos Negócios).
A HQ não chega a acrescentar nada de significativo à história, mas deve ser lida como canônica. Nas páginas digitais, com desenhos que deixam muito a desejar – principalmente no que diz respeito à anatomia – vemos o serviço que Cobb e sua equipe faz para a empresa rival do Sr. Saito (a Cobol Engeneering ), e o evento que antecede o encontro de tais personagens. As informações que Cobb tanto procura no começo do filme devem ser obtidas após uma tentativa mal sucedida de extração para com um dos engenheiros de Saito, o Sr. Kaneda. Diante da não existência de tais dados na mente do empregado, Cobb é obrigado à adentrar no subconsciente do próprio Saito. Eis então o link para o começo de A Origem.
E o que o filme em si, conta? Fala sobre uma simples idéia: a de que é possível compartilhar sonhos através de uma máquina cujo funcionamento não é descrito no longa, mas pouco interessa. Sendo assim, terceiros tornam-se aptos à criarem mundos imaginários, necessários para a correta extração de segredos de uma mente alvo; ou, no caso, a implantação de uma concepção. E se tal conceito não fosse por si só genial, Nolan vai além ao extrapolar sua função ao infinito, criando sonhos dentro de sonhos dentro de sonhos, apresentando novos conceitos a todo momento. Isto concede ao roteiro um brilhantismo inato, mas também estimula uma liberdade de direção quase utópica. Nolan consegue exibir cronologicamente e simultaneamente três níveis diferentes de ação e tensão, o que eleva ao cubo os obstáculos a serem superados pelo herói. O diretor faz uso de argumentos semânticos para intensificar a concepção de quadros dinâmicos em uma película. Se Cameron revolucionou o cinema com sua tecnologia – e ao mesmo tempo permitiu o uso desenfreado de tal evolução, Nolan revolucionou a forma de se contar uma história, e isso, creio que seja naturalmente elitizado, ou melhor dizendo, exclusivo de sua mente essencialmente criativa.
O que acontece é que o diretor cria um conceito dentro de outro, ao mesmo tempo em que percorre os diversos níveis dos sonhos. A ideia de que o que o seu corpo vivencia no mundo real possui conseqüência direta – correlacional com a verdadeira sensação, e atuante como um personagem dentro do próprio sonho – é colocada diversas vezes na tela, e de forma extremamente natural e profundamente intensa. Um exemplo é quando um personagem é mergulhado; a mente produz um efeito direto no desenvolver do sonho, geralmente explicitando o seu fim através de um tsunami absurdo. Utiliza também da mitologia dos sonhos ao explorar o fato intrigante da “queda” estar relacionada intimamente com o momento do despertar, resumindo em uma técnica chamada de “chute”; os efeitos da gravidade podem ser anulados caso o ambiente onde os personagens estão dormindo fique instável. A cena de perseguição no primeiro nível de sonho ilustra isso muito bem.
A trama é amplamente detalhada e perfeitamente crível. O argumento convence o espactador de que aquilo é possível, não simplesmente por causa do roteiro em si, mas devido à harmonia épica de todos os elementos que formam o produto final: direção, trilha sonora impecável (composta pelo mestre Hans Zimmer), roteiro brilhante e atuações perfeitas. Sim, Leonardo DiCaprio convence como protagonista. Convence como um pai de família marcado por más escolhas feitas no passado. É claro o fardo que Cobb carrega durante o filme. Mérito do ator e mais um ponto para Nolan, naturalmente.
O artigo se reservará agora à comentar mais profundamente alguns conceitos expostos no filme. Portanto, as linhas que se seguem estarão recheadas de SPOILERS!
Ariadne (Ellen Page) projeta os três níveis de sonhos, mas os papéis são trocados diversas vezes entre os personagens na medida em que eles vão avançando nas camadas de irrealidade. Arthur e Eames chegam a desempenhar o papel de arquiteto, fazendo mudanças eventuais quando necessário. Fica claro que esta função específica, é, na verdade, a mais importante de toda a operação. Sem o arquiteto o mundo desmorona. É ele quem guarda o sinal do despertar, pois é sempre o arquiteto quem exibe o fone de ouvido em uma camada inferior do sonho.
As mudanças de ambiente não se propagam através dos níveis de sonho. Esta tese explica o porque de quando a van está em queda livre – portanto, imprimindo uma força de campo que anula o efeito da gravidade na camada seguinte do sonho -, a terceira camada não é afetada. Acontece que um efeito no segundo nível de sonho não implica necessariamente em imprimir a mesma força na terceira camada. É plausível considerarmos tal proposição, já que na segunda camada o mesmo efeito de queda-livre é verificado – apesar de não ter a queda como causadora -, e, no entanto, nada acontece com o ambiente da montanha. A gravidade ainda existe. Inclusive, a suposição de um dos personagens sobre a “turbulência do avião” (duas camadas abaixo) ser a causadora de tremores é descartada imediatamente por Cobb. Ele afirma ser algo “mais próximo”.
E finalmente, acerca do fim. O filme dá abertura para duas teorias finais. A primeira: tudo deu certo, Cobb resgatou Saito e o pião parou de girar. A conversa com Saito no limbo, e a iminência da morte por um tiro da arma de Cobb reforça esta teoria. Ele não teria como se matar antes pois não sabia que estava sonhando. A chegada de um Cobb jovem torna tal hipótese verdadeira. A segunda é que o pião perpetuou seu giro através do infinito e, portanto, tal realidade tratava-se, na verdade, do limbo. É plausível mesmo com os filhos de Cobb olhando para ele e se reencontrando com o pai. Caso isso não ocorresse, ele saberia que se tratava de um sonho, logo, seu próprio subconsciente resguardou tal encontro. Esta teoria aconteceria caso Cobb soubesse que não conseguiria salvar Saito e, portanto, viver sonhando seria algo muito melhor do que a própria realidade melancólica que o esperava. E mesmo ele estando já no limbo, a realidade após Ariadne despertar reiniciou – quando ele acorda na praia, logo no começo do filme -, o que torna crível a extensão de tal efeito para múltiplas aplicações.
Depois de todas as interpretações possíveis, as discussões e os devaneios, penso que Nolan virou meu cineasta preferido da atualidade. Muitos falam que A Origem é o novo Matrix, mas não gosto de comparar. Este filme é algo novo. Algo completamente diferente e paradoxalmente semelhante. É simplesmente mais uma obra prima do cinema contemporâneo.