O mundo mudou e se tem algo que Holywood ainda mantém como dignidade é sua atenção as considerações de seu meio. Nem preciso salientar que a chegada de Barack Obama ao poder (assim como a reafirmação disso em sua reeleição) reconfiguraram plenamente as possibilidades de roteiros, num ano em que dois dos principais indicados ao Oscar 2013 tratam diretamente sobre a questão racial, assunto tão delicado numa cultura como a norte americana. Com Lincoln e Django Livre, Steven Spielberg e Quentin Tarantino respectivamente, se valem de aspectos históricos para, com enfoques e criticidades próprias, mostrarem como a identidade negra é tão espacial quanto importante para o reconhecimento da América como nação.
Spielberg debruça-se sobre a história do Lincoln com base em Team of Rivals, livro que analisa o gabinete de governo do presidente e na relação que o mesmo formou com seus ex-rivais de campanha. O roteirista Tony Kushner limita a trama ao definitivo ano de 1865, o quarto e último da guerra civil. Lincoln precisa decidir se vai estender um pouco mais o conflito (a aprovação da abolição poderia significar o fim da guerra, o que botaria pressão na Câmara na hora da votação) ou encerrá-lo de vez, numa opção mais pragmática.
O filme vai revelando o jogo de negociatas em cima da brecha da 13ª Emenda à Constituição norte-americana, que aboliria a escravatura, numa espécie de “mensalão do bem” onde os fins justificam os questionáveis meios. Nesse sentido, digamos, político, o roteiro de Tony (o mesmo do emblemático Angels in America) é certeiro ao nos revelar que a política é perniciosa desde sempre e em qualquer nicho e país, porém a excessiva mitificação impetrada pelo diretor acaba por atrapalhar o discurso num âmbito geral. A falta de humanidade na construção dramática do presidente, aliado a uma postura vulgarmente heroica, fazem com que o filme caia num artificialismo fatal a sua credibilidade. É o raro caso em que a direção burocratiza o potencial de um roteiro. O resultado é que a superprodução trata a questão racial pela visão distorcida da vitimização em ressonância a figura salvadora de um mito. Aí é que está: se o filme quer ser um “documento” real sobre uma política universal dentro de um país, por que Spielberg opta pela dramatização maniqueísta da questão? É uma resposta que o filme não dá e, junto com os lapsos sentimentalistas do diretor, só reforçam que Lincoln existe para levantar uma boa discussão, mas sem justificativa que o valha.
Tarantino é bem mais feliz no seu discurso, ainda que escorregue na sua dramaturgia. Entretanto Django Livre é um filme que não se atém às suas convicções, sendo um delicioso exercício de cinematografia, abrangendo gêneros clássicos e a impressionante capacidade do cineasta em aglutinar isso de forma original e substancialmente relevante. A obsessão de Tarantino sobre as desinências da Vingança parece cair perfeitamente na crítica que o mesmo faz ao período de escravidão na América. Faroeste com herói negro, a produção (mais lucrativa do diretor, diga-se de passagem!) traz um vingador para as atrocidades cometidas no passado, na época em que existia a escravidão no sul dos EUA.
Se no excepcional Bastardos Inglórios, o diretor dinamiza seus maneirismos para trazer catarse as vítimas dos desmandos do nazismo, em seu novo filme, ele coloca em seu liquidificador pop tudo o que acha preciso para relativizar a relação cultural de seu país com a condescendência social do assunto. Não é por acaso que a bravura dos western é evocada. Existe muito deboche nos signos estéticos por trás do filme, como podemos perceber na fala importantíssima do escravo Django em determinado momento: “Estou um pouco mais habituado à América do que o Dr. King”. Isso é Tarantino justificando todo o seu circo.
Se o filme estende demais sua dramaturgia a ponto de banalizá-la em sua hora final, Tarantino continua a ser um dos artesões mais vigorosos do cinema contemporâneo. Nenhuma criticidade cinematográfica acerca da escravidão foi tão cínica e o cineasta joga suas habituais referências em nossa cara com a mesma habilidade com que nos faz refletir sobre como a América lidou e se formou com o tema. Django não é um herói. É um negro cheio de defeitos e falta de ética. A humanidade de seus atos são zero de romantismos tolos. O diretor sabe que a “função” de sua alegoria só funciona se for crível, pelo menos do ponto de vista de construção de personagens, uma marca muito forte do diretor/roteirista. Pode não ser perfeito, mas Tarantino ainda tem o poder de fazer do seu cinema uma visão muito própria e muito universal.
O mundo realmente mudou e com isso as perspectivas também foram se adequando a isso. Spielberg e Tarantino nivelam essas transformações em obras que difundem o papel do negro ontem e hoje. É uma discussão velha para um problema atemporal. No final das contas isso gera e repercute o assunto entre as diferentes rodas. E não seria esse o papel do cinema, mesmo sob a alcunha do entretenimento?
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