Um dos símbolos da normatização do apartheid racial norte-americano, especialmente entre os anos 40 e 70, o chamado Green Book era uma espécie de “Páginas Amarelas” (!) contendo a relação de todos os estabelecimentos comerciais que aceitavam a presença de afro-americanos, geralmente verdadeiras pocilgas. “Green Book: O Guia” também virou o nome do filme sacarose da temporada de premiações em 2019. Sacarose boa, de qualidade.
Ambientado nos Estados Unidos da década de 1960, a trama acompanha a história do malandro Tony Lip (Viggo Mortensen, ótimo), que está à procura de um emprego provisório e eis que surge em seu caminho a oportunidade de ser motorista de um renomado pianista negro, Don Shirley (Mahershala Ali, cada filme que passa, ainda mais brilhante), que está entrando em turnê nos temidos estados do sul do país, com leis e hábitos racistas bem evidentes em seus cotidianos. Basicamente o epicentro da segregação racial dos EUA na época. Uma jornada literalmente nada fácil para ambos, mas que se transforma numa troca de afetos mútuos.
É surpreendente que a direção esteja a cargo de Peter Farrelly, cujo nome foi construído em cima de comédias escatológicas (clássicas) como “Debi & Lóide”, e aqui constrói uma narrativa equilibrada entre o comentário e a sensibilidade social. O roteiro é um projeto pessoal do roteirista Nick Vallelonga, que vem a ser filho de Tony, ou seja, um projeto pessoal e com a propriedade da memória afetiva. É o que impulsiona a sensibilidade dessa relação que emerge das diferenças muito bem trabalhadas e delineadas pelas atuações sólidas dos atores (e ainda da atriz Linda Cardellini, como Dolores, esposa de Tony, e que merecia mais tempo em cena).
Por mais que o diretor não seja exatamente um esteta e o filme nem tenha propriamente um discurso efetivo de lugar de fala (nem era o caso), há muitas camadas em sua aparente simplicidade, permeada pelo carisma dos atores e pela força da sua história real, que nasceu importante no âmbito pessoal dos envolvidos e espacial da América segregadora da época. Mas o que “Green Book” mais resguarda do que tem a dizer é sua linha tênue entre a realidade e o que se faz dela. O filme cresce entremeado nessa fresta (a cena do frango frito é a melhor representação disso). A história é dramaticamente forte. Coube a Farrelly fazer disso um bom filme.
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