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“As Histórias de Meu Pai” é filme leve demais sobre assunto sério

Mitomania é vista pelos olhos de uma criança que considera o pai um herói.

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Mitomania é um transtorno psicológico no qual o paciente mente compulsivamente com o objetivo de disfarçar sua própria realidade. O pai do protagonista de As Histórias de Meu Pai claramente é mitômano, mas isso não nos é informado em nenhum momento. Isso também não foi informado ao jovem protagonista, e é no lugar dele que o filme nos coloca a todo momento. Quem espera de As Histórias de Meu Pai um filme leve e divertido terá uma grande surpresa.

Atenção: esta crítica tem spoilers!

Nossa história começa na cidade de Lyon, em 1961. A França acabava de declarar guerra à Argélia, e nesse contexto André (Benoît Poelvoorde), pai de Émile (Jules Lefebvre), um garoto de onze anos, começa a contar ao filho histórias sobre uma organização secreta comandada por Ted, seu melhor amigo americano. A organização teria papel no esforço de guerra, e Émile era necessário como novo soldado para missões ultrassecretas.

As Histórias de Meu Pai

Quando um menino argelino, Lucas (Tom Levy), chega para ser colega de escola de Émile, este decide adicionar, por conta própria, o novo menino à organização, e juntos eles tramam um plano para assassinar Charles de Gaulle, então presidente da França. E assim, aos poucos, Émile vai se tornando tão mentiroso quanto o pai.

Émile se expressa através de belos desenhos, nos quais também dá vida às histórias que o pai conta. Esses desenhos acabam chamando a atenção da professora de arte, que ao mesmo tempo se maravilha com o talento do garoto e se preocupa com o conteúdo daquelas histórias. Não é incomum que casos de abuso contra crianças sejam descobertos através dos desenhos abstratos que essas crianças fazem e no contexto do filme os desenhos também poderiam ajudar num diagnóstico para André, mas a trama não anda nessa direção.

As Histórias de Meu Pai

Por vezes André é grosseiro e até violento com a esposa, Denise (Audrey Dana). Em troca, ela não revida, apenas aceita as agressões e segue em frente. Estamos em inícios de 1960, antes dos grandes movimentos de libertação feminina do final da década, e a personagem, uma simples contadora assistente, não tem como deixar este relacionamento que é pra lá de abusivo. O filme não vai tão longe – e nem poderia – ao ponto de generalizar e dizer que todo abusador é uma pessoa doente, apenas delineia uma história em que esta é a realidade da qual a mulher não tem saída.

A mãe de Émile diz que André é do jeito que é porque teve uma vida difícil, mais especificamente ficou traumatizado com seu período no exército, servindo na Argélia. As causas da mitomania não são totalmente conhecidas, mas se aventa a possibilidade de ela ser originada de um trauma ou ser consequência de epilepsia.

Lucas é um “Pied-Noir”, ou seja, um cidadão francês que morava no Norte da África, em regiões dominadas pela França até a década de 1960, como a própria Argélia, o Marrocos e a Tunísia. Estes cidadãos, quando adultos, tinham diversos benefícios e assumiam cargos administrativos que eram vetados aos nativos daquelas terras. O termo era mais utilizado para se referir aos cidadãos que voltaram a morar na França após a independência daquelas regiões, passando a viver quase como apátridas, pois não eram aceitos nem em sua terra de origem nem em seu destino. Lucas é, portanto, ostracizado mesmo na sala de aula, pois o sentimento contra os “pied-noirs” já se fazia sentir mesmo entre as crianças.

O filme é adaptado de um livro bastante sombrio, de autoria de Sorj Chalandon. O responsável pela adaptação foi o diretor Jean-Pierre Améris, junto a Murielle Magellan. Améris conta que balancear os lados sombrios e cômicos foi um desafio, e que André não pode ser visto como vilão: “O pai não quer destruir seu filho, nem apagá-lo. Ele quer arrastá-la para sua loucura, para um mundo de pura ficção, mas o que acaba sendo perigoso. Tudo isso para não ficar sozinho ali, para ter um amigo. Você precisa de um ouvinte mitomaníaco. Ele aparece como um herói aos olhos de seu filho, que quer fazer de tudo para estar à altura. E a criança não consegue perceber isso, ela não tem as ferramentas.”

As Histórias de Meu Pai

Jules Lefebvre é um achado. O jovem ator se destaca no clímax do filme, uma cena de confronto que desafiaria até veteranos da atuação. Este é apenas o segundo longa-metragem do jovem ator, que com certeza tem uma carreira de sucesso pela frente.

Como dito anteriormente, em momento nenhum o filme explica o que é mitomania. Isso poderia ter sido facilmente contornado no epílogo, quando encontramos um Émile já adulto e sua mãe fazendo uma visita ao pai, recém-internado. Ao invés disso, temos a mãe confessando que mentiu em determinada situação “porque era mais fácil”. Isso leva a crer que ela também não deixou o relacionamento abusivo “porque era mais fácil”, quando na realidade as mulheres não deixam esses tipos de relacionamento porque não têm outra opção.

Os franceses sabem como quase ninguém fazer bonitos filmes sobre situações sérias. É só se lembrar do recente “Esperando Bojangles”, que trata com mais sucesso de uma condição mental séria. As Histórias de Meu Pai escolhe tomar o ponto de vista de uma criança, que considera seu pai um herói, para tratar de assunto sério, até chegar a um ponto em que o protagonista precisa amadurecer e encarar a realidade, mesmo que esse amadurecimento seja à força. Andando na corda-bamba entre o sério e o sombrio, As Histórias de Meu Pai nunca pende para nenhum dos lados, e aí jaz seu principal erro: após o filme, quem quiser que procure mais informações sobre a mitomania que acomete André, pois o filme não dará respostas mastigadas aos seus espectadores.

As Histórias de Meu Pai

As Histórias de Meu Pai
6 10 0 1
Nota: Bom 6/10 Estrelas
Nota: Bom 6/10 Estrelas
6/10
Total Score iNota: Bom 6/10 Estrelas
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