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“Bacurau” mistura gêneros e alegorias para fazer um cinema arrebatador

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Há uma expressão que diz que há muitos Brasis dentro de um Brasil. A questão é que a grande maioria dos brasileiros não conhece o que o país realmente possui, o que necessita, o que o forma. Isso também pode ser relacionado com o cinema que é produzido em nossa terra, geralmente vítima de preconceitos e reducionismos que não permite que o grande público conheça a sua verdadeira riqueza e o imenso valor que possui.

Por isso, quando surgem obras como “Bacurau” (Idem, Brasil/França, 2019), o público brasileiro tem uma ótima oportunidade de descobrir que o nosso país tem capacidade de realizar obras que conseguem dialogar não só com o Brasil mas com o resto do mundo de uma forma arrasadora. Tanto que o júri do Festival de Cannes de 2019 reconheceu a força de sua mensagem e lhe deu um dos prêmios mais importantes e mais desejados do mundo.

O mérito vai para todos os envolvidos no projeto, mas principalmente para a dupla de diretores e roteiristas Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, que criou um filme audacioso, vigoroso e, acima de tudo, irresistível. Capaz de reverberar na mente do espectador por muito tempo depois que as luzes da sala de projeção se apagam.

Ambientada num futuro próximo, a trama mostra a volta de Teresa (rbara Colen) a sua cidade natal, Bacurau, que fica no Oeste de Pernambuco, devido à morte de uma parente. Chegando lá, Teresa se dá conta de que os moradores, entre eles Pacote (Thomás Aquino), Plínio (Wilson Rabelo) e a médica da cidade, Domingas (Sonia Braga), estão apreensivos com o número crescente de mortes inexplicáveis que vêm acontecendo na cidade.

Isso sem falar em estranhos acontecimentos, como o sumiço de Bacurau do mapa do Brasil, o surgimento de um objeto inusitado no céu e a chegada de dois forasteiros (Karine Teles e Antonio Saboia), que vão deixando a situação cada vez mais insustentável, o que leva os habitantes da cidade a se aliar a Lunga (Silvero Pereira), um assassino que morava na cidade e que vive à margem da sociedade, para garantir a sobrevivência da comunidade a qualquer custo.

Entre os muitos méritos de “Bacurau”, um dos que mais se destaca é o domínio da direção de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, que trabalham muito bem nos diversos gêneros que utilizam para contar a sua história. Assim, temos elementos de drama, suspense, ficção científica e, principalmente, faroeste, seja nos enquadramentos, na utilização da trilha sonora (que mistura orquestrações clássicas com música eletrônica de forma surpreendente e ao mesmo tempo incômoda, mas no bom sentido), ou mesmo na maneira que utiliza uma fotografia alaranjada, que remete aos westerns de mestres como John Ford ou Sergio Leone e ajudam a reforçar a aridez da região, especialmente em seu terço final, que possui os melhores e mais impactantes momentos da história.

Além da direção, a dupla também se esmerou no roteiro, que mesmo tendo sido escrito há dez anos, conversa claramente com a plateia atual, ainda mais com a situação que o país vive. Assim, temos personagens interessantes e “gente como a gente”, que têm que lidar com situações que parecem ser surreais. Ao mesmo tempo, há uma crítica severa aos políticos demagogos, como o prefeito Tony Jr, vivido por Thardelly Lima, que prometem mundos e fundos mas não cumprem nada que não seja de seu interesse próprio. O texto também funciona ao manter o público tão atordoado quanto os moradores de Bacurau sobre o que está acontecendo ali, ao não oferecer explicações simples e clichês, deixando a todos intrigados para entender tudo até ao final.

Outro tema que é tratado em “Bacurau” é a questão da memória, algo que Kleber Mendonça Filho já tinha trabalhado antes em seus filmes anteriores, os também ótimos “Aquarius” e “O Som ao Redor”. Assim, o filme usa uma alegoria para mostrar que, cada vez mais, há um desejo de um grupo de pessoas que deseja acabar de uma vez por todas com o passado, em prol de um progresso que ninguém sabe que se fará bem ou não à nossa sociedade. Além disso, sempre é importante aprender com a memória e não renegá-la. E isso, talvez, seja a mensagem mais importante que o filme quer passar.

O elenco, formado por atores profissionais e moradores da cidade de Barra, no Rio Grande do Norte, que serviu de locação para o filme, também merece destaque. Embora não haja protagonistas, como acontece na forma clássica de narrativas, tanto Sonia Braga quanto rbara Colen,Thomás Aquino e Silvero Pereira têm momentos para brilhar em determinados momentos da trama. Deles, o que mais surpreende é Silvero, que tem um papel totalmente diferente do que já tinha feito até então, tornando seu Lunga um tipo ao mesmo tempo cativante quanto perigoso.

O alemão Udo Kier, como o misterioso Michael, também impressiona, principalmente na cena que divide com Sonia Braga e é responsável por algumas das sequências mais tensas do filme. Uma pena, no entanto, que a ótima Karine Teles pouco tenha a fazer como uma dos forasteiros. Ela merecia mais tempo na tela.

Mesmo que o ritmo caia um pouco na metade do filme, “Bacurau” é uma das melhores obras a chegarem aos cinemas e dá um grande orgulho de saber que os nossos realizadores estão numa ótima fase, com produções que têm uma identidade própria e estão conquistando públicos de várias partes do mundo, assim como “A Vida Invisível”, que também foi premiado em Cannes e vai concorrer a uma vaga ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2020. Isso enche os amantes da sétima arte tupiniquim de esperança. Longa vida ao (bom) cinema brasileiro. E viva Bacurau!!!

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