Um dos filmes mais excitantes e polêmicos da competição do Oscar 2021 é o primeiro longa dirigido por Emerald Fennell, conhecida por seu trabalho como atriz na série The Crown.
Pra falar do filme sem trazer spoilers específicos de cenas ou desenvolvimentos da narrativa, decidi falar sobre a temática geral e sobre os motivos pelos quais considero-o tão inovador, impactante e necessário.
Então vamos lá. Em linhas gerais, Bela Vingança nos apresenta Cassie, uma jovem mulher, interpretada por Carey Mulligan, prestes a completar 30 anos, ex estudante de medicina que vive com seus pais e trabalha em um Café. À noite, ela sai por aí se colocando em situações de vulnerabilidade a ponto de ser percebida pelos homens como uma presa fácil ou uma donzela em perigo, dependendo de quem olha. E no momento em que parece estar à mercê dos desejos alheios, Cassie reverte o jogo de poder.
Ok. Não vou dar mais detalhes porque esta resenha aqui é um convite e um tira gosto. Aquele aperitivo que faz a gente querer comer o prato principal.
O subtexto que permeia toda a trama é a cultura do abuso, e consequentemente, a complexa ideia de consentimento. Estamos vivendo um momento de mudanças (fundamentais, eu gostaria de acrescentar). Movimentos como o Eu Também (Me Too) e a atualização da pauta feminista deram base a muitos debates em torno destes temas. Mas este é um processo lento e sofre bastante resistência. E isso não deveria ser nenhuma surpresa, pois quando uma cultura inteira tem suas raízes marcadas por um determinado modo de pensar e agir, é difícil a gente conseguir mudar isso de fora pra dentro, podando umas folhinhas aqui e ali. É precisa fazer trabalho de base, cortar o mal pela raiz.
Entendendo essa resistência e não querendo “pregar para os convertidos” ou enfim, falar apenas para a bolha que já pensa como ela, Emerald foi extremamente inteligente em driblar possíveis barreiras e preconceitos que permitiram-lhe realizar um filme muito mais atraente para todo tipo de público.
Começando pelo fato de não ser didático nem panfletário. Uma das maiores armadilhas nas quais histórias que pretendem alertar ou fazer críticas tendem a cair é tentar doutrinar o público. Isso enfraquece a história, simplifica a narrativa e torna tudo muito chato (chato no sentido de plano mesmo, sem variações). E acaba perdendo a capacidade de comunicar algo com eficácia e abrangência. Quando alguém nos acusa de algo, ainda mais se essa pessoa nem conhece a gente, nossa primeira reação tende a ser nos defendermos. E à partir daí a crítica já se perdeu no mar de autopreservação que criamos para nos afastar daquilo do qual estamos sendo acusados. Ouvimos crítica quando sabemos que vêm de um lugar seguro, construtivo, de empatia e generosidade. Então se uma diretora quer fazer um filme pra chamar os homens pro debate, não dá pra assustá-los pra fora dos cinemas e da frente das telas. É preciso trabalhar nas sutilezas e nas indefinições.
Este é o segundo ponto de maestria de Emerald: a mescla de diferentes gêneros narrativos. Assim como Corra (Get Out), de Jordan Peele, flerta entre a comédia, o thriller psicológico e o terror, Bela Vingança possui sequências inteiras que poderiam ser identificadas como comédia romântica, filme indie esquisito autoral, thriller psicológico ou suspense. Numa entrevista do elenco, todos falaram que foram instantaneamente atraídos pela originalidade e pela coragem do roteiro em permitir que um tema tão sensível fosse tratado à partir de tantos tons e interpretações possíveis. Isso não apenas permite o público a passear por uma grande variação de sensações como também permite a história quebrar expectativas e seguir rumos inesperados. E ainda, o humor é perfeito porque aproxima!
A diretora diz querer atingir aquela sensação meio indefinida que nos leva a rir e sentir desconforto ao mesmo tempo, aquele limiar que dá prazer e incomoda, porque nos convoca enquanto espectadores a responsabilizar-nos por nossas reações.
O que nos leva então ao terceiro ponto alto: o caráter dúbio e constantemente limítrofe entre certo e errado. Sempre que posso, gosto de ressaltar o quão interessante e instigante penso serem filmes que conseguem trazer narrativas que desafiam nossos pontos de vista e nosso senso de moralidade. Quando falamos de heróis e vilões, fica fácil se posicionar enquanto espectador. É confortável porque você sabe que ficou do lado de quem merece vencer aquela jornada. Mas quando, por outro lado, o filme te convida a participar de algo mais complexo recheado de nuances e contradições, aí sim é que você é desafiado a se questionar.
Podemos identificar essas nuances na própria base que sustenta a história: o abuso. E, como eu havia já mencionado, é mesmo preciso voltar para a base. Por isso, o filme nos leva a refletir sobre uma pergunta tão básica quanto: o que caracteriza um abuso?
Vivemos numa sociedade que tende a acreditar que abuso e estupro fazem parte de categorias extremamente específicas que envolvem intenção de crueldade, luta corporal e outros extremos. Bela Vingança nos confronta sobre algo que está constantemente aparecendo nos jornais. Aqui no Brasil mesmo, recentemente, uma YouTuber que acusava um homem por abuso foi humilhada durante uma sessão do julgamento pelo advogado de defesa do acusado, que tentou, como de praxe, difamá-la e caracterizá-la como “mulher fácil”, o que, infelizmente, tende a inverter os papéis e colocar a mulher quase que imediatamente no lugar de réu.
Esse tipo de argumento só funciona e é aceito porque a sociedade de modo geral pensa dessa maneira. Tendemos a achar que mulheres que saem sozinhas ou que usam saias curtas estão se colocando conscientemente em situações de perigo e por isso, devem ser responsabilizadas por quaisquer ações mais agressivas ou dominadoras dos homens, pobres animais movidos por instintos, incapazes de reflexão e racionalidade, ou até mesmo, sensibilidade.
Por tudo isso, a diretora-roteirista decidiu apontar exatamente para aquelas áreas cinzentas que são mais difíceis de identificarmos como abusivas, de modo a nos convidar a observar e refletir. Em uma entrevista ela ressalta que tinha como intenção criar personagens totalmente relacionáveis e com os quais pudéssemos nos identificar, ainda que parcialmente.
Mais do que julgar, o filme está interessado em te chamar pra perto. Nenhuma das personagens é má. Chamar os homens que cometem abusos de monstros é uma maneira de separá-los do que poderia ser considerado normal, como se fizessem parte de outra categoria mais diabólica ou cruel, quando na verdade essas ações fazem parte de nosso dia a dia.
Por isso mesmo sou contra a cultura do cancelamento que estamos vivendo. Porque não enfrenta os problemas, mas joga-os pra debaixo do tapete. E o que vem acontecendo no mundo todo está no mostrando que quanto mais você joga as coisas pra longe da sua visão, mais elas vão crescendo às margens e ganhando formas terríveis e impensadas.
Ideias que consideram ciúmes e possessividade provas de amor, pessoas acreditarem que quando uma mulher diz não, na verdade ela quer dizer que sim ou pessoas acreditarem que uma mulher bêbada não se dá ao respeito são versões dessas aberturas que validam as atitudes de homens todos os dias. E só pra finalizar esse ponto, eu queria lembrar que a maior parte dos abusos é perpetuado por amigos, ex namorados, familiares… enfim, pessoas do nosso convívio mais íntimo. Homens que se consideram super legais e gente boa.
Como o texto já tá se alongando demais, eu quero fechar com só mais duas coisinhas.
Uma é dizer que por mais que eu esteja focando na temática crítica, faço isso porque prometi que não iria dar spoilers diretos da trama. Ademais, Bela Vingança é divertido, esquisito, tenso e cheio de adrenalina. E segue um arco narrativo extremamente consistente e interessante de uma protagonista fda. E cuja fdacidade está exatamente em ser muito mais próxima do real do que as personas femininas superpoderosas criadas por Tarantinos, Millers e Bessons da vida. Não me entendam mal, adoro À Prova de Morte, assim como adoro o Mad Max novo, O Quinto Elemento, e tantos outros que acabaram por criar mulheres super habilidosas com sangue frio, total conhecimento de armas, passos de karatê e socos potentes. Acho que isso também tem seu lugar. Mas faço uma leitura crítica sobre essa mulher maravilha que é linda, gostosa, sedutora, esperta e forte, tudo ao mesmo tempo. Me parece ser apenas o encaixe do feminino no imaginário masculino, o ideal fetichizado da mesma sociedade que descarta as mulheres que não passam no teste de beleza.
Já não era sem tempo de abrirmos espaço para heroínas mais sutis, mais humanas e mais femininas.
As mulheres estão se tornando cada vez mais conscientes de que aquelas brincadeiras “inocentes” na verdade são desrespeitosas, humilhantes e inaceitáveis. É preciso ter empatia e generosidade pra transmitir essa mensagem e essa diretora foi extremamente generosa ao nos proporcionar uma obra que certamente já virou um clássico.
Excelente crítica, só me deixou muito curioso para assistir!!
parabéns, Raquel. Gostei muito e vou assistir por causa de sua crítica.