Yes, nós temos animação made in Brasil. Embora a maioria delas seja de curtas-metragens que percorrem os circuitos dos festivais – isto é, não chegam ao grande público através de cinemas ou streaming – há também os longas de animação, e estes sim podem passar pelas salas de cinema. Quem chega aos cinemas esta semana é o longa-metragem de estreia do animador Marcelo Marão, indicado aos adultos criativos e inconformados: Bizarros Peixes das Fossas Abissais.
De um lado temos uma mulher com o poder de se transformar em diversos animais e coisas e que está à procura de cacos de um vaso que pode levar à cura de problemas de memória. De outro há uma tartaruguinha fofíssima porém ranzinza que trabalha como repositora numa loja de material de construção e é obcecada por arrumação. Quis o destino que essas duas figuras se cruzassem por intermédio de uma nuvem cúmulo-nimbo que serve de transporte para a mulher com poderes mágicos. Agora este trio improvável parte para Belgrado para terminar de montar o quebra-cabeça que pode devolver as lembranças ao avô da moça. Isto é, se eles não forem impedidos por rinocerontes espaciais que expelem suco de graviola sem açúcar.
A história resumida no parágrafo anterior pode causar estranheza, mas não deveria intimidar o espectador. Ora, não exercitamos grandemente a suspensão da descrença quando resolvemos mergulhar no universo dos filmes da DC e Marvel? Por que não podemos fazer o mesmo com uma produção brasileira? O cinema fantástico brasileiro ainda representa uma fatia pequena do nosso fazer cinematográfico, mas vem se desenvolvendo cada vez mais, com muita inventividade e resultados excelentes, como o desta animação.
A animação dos personagens-título, os bizarros peixes das fossas abissais, é primorosa e um deleite para mim que sempre fui fascinada por estas criaturas ímpares. As zonas abissais são regiões do fundo do mar, a partir dos 2000 metros de profundidade – embora existam peixes abissais que vivem em profundidades menores – e que se caracterizam pela ausência de luz solar, alta pressão e temperaturas baixas. Para sobreviver nestas condições, os peixes abissais desenvolveram características que por vezes podem lhes garantir a alcunha de “monstros”, mas são adaptações biológicas sagazes, como a bioluminescência, que é a capacidade de um animal produzir luz própria, no caso dos peixes, para atrair presas e parceiros. Estima-se que sejam conhecidas 17 mil espécies abissais, mas esta zona marinha ainda é bastante inexplorada.
Marão declarou em entrevista que todo o orçamento de “Bizarros Peixes das Fossas Abissais” é o suficiente para se animar apenas nove segundos de “Encanto”, da Disney. Feito sem storyboard, o filme e seus personagens foram sendo moldados conforme eram desenhados e animados, tudo isso feito por uma equipe de apenas três pessoas. Não à toa o projeto demorou uma década para sair do papel: foram quatro anos captando recursos e seis anos gastos com a mão na massa, animando.
As vozes são de Natália Lage, Rodrigo Santoro e Guilherme Briggs. Briggs é um nome certeiro quando se fala em dublagem no Brasil, mas Santoro também tem experiência em dar voz a personagens. Rodrigo Santoro estreou na dublagem aos 24 anos, com “O Pequeno Stuart Little” (1999) e dublou as animações “Rio” (2011), “Rio 2” (2013) e “Klaus” (2019). Esta é a primeira vez que Natália Lage trabalha na dublagem de um filme. Uma curiosidade: Rodrigo Santoro e Natália Lage já se conheciam, pois viveram um par romântico na novela “O Amor Está no Ar”, de 1997.
Produzindo o filme temos, além de Marão, Letícia Friedrich, que tem uma carreira ampla como produtora, já cheia de sucesso, como o celebrado filme “Amor, Plástico e Barulho” (2013) e o excelente curta-metragem “Chão de Fábrica”, eleito pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema como o melhor curta feito no Brasil em 2021. Letícia já havia trabalhado com Marão anteriormente, no curta que ele dirigiu em 2015, “Até a China”.
“Bizarros Peixes das Fossas Abissais” fez sucesso nos festivais por onde passou, e é motivo de celebração que chegue aos cinemas. Um esforço hercúleo e uma jornada muito pessoal – que de alguma forma espelha a da protagonista – o filme é espetacular e merece ser visto por todos, em especial pelos fãs de Marão. O animador garante: este não será o último de seus longas de animação.
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