A Itália é figurinha fácil de encontrar no álbum do Oscar, álbum este que se renova anualmente, com novos indicados e vencedores. O país que legou ao mundo do cinema De Sica e Fellini, entre tantos outros, já conta com 30 indicações na categoria Melhor Filme em Língua Estrangeira, tendo ganhado 11 vezes. A mais recente indicação foi com “Eu, Capitão”, uma história épica repetida tantas vezes na vida real, mas ainda não filmada com tamanha intensidade.
Os primos Seydou (Seydou Sarr) e Moussa (Moustapha Fall) vivem em Dacar, Senegal, mas sonham em fazer sucesso no mundo da música na Europa. Juntos, eles trabalham e guardam dinheiro para financiar a travessia e, sem contar para suas famílias, de fato iniciam juntos a jornada, singrando o deserto do Saara. Logo aprendem que tudo tem um preço – literalmente –, até que são separados na Líbia, e cada um vai para uma prisão distinta. Eles voltarão a se encontrar e, o mais importante, conseguirão cruzar o Mar Mediterrâneo?
Seydou é um adolescente de 16 anos que precisa amadurecer rapidamente na travessia, em especial ao passar pelo Mar Mediterrâneo, que é quando assume uma posição para alguém muito mais velho e responsável. É neste momento que o título do filme se justifica – sendo depois repetido várias vezes, para ênfase, no clímax e final – e é também aí que o filme diverge do coming-of-age tradicional, tornando-se algo muito maior e mais significativo. Seydou toma as rédeas – ou melhor, o leme – do seu destino e de centenas de outras pessoas.
O italiano não é a língua mais falada em “Eu, Capitão”. Há diálogos em francês e inglês, mas a língua que predomina é o wolof, idioma nativo de 40% dos senegaleses. Mais de 16 milhões de pessoas no continente africano têm o wolof como segundo idioma, o que justifica a importância de ele ser finalmente ouvido no cinema, em um filme que vem recolhendo elogios e prêmios.
A Europa, para alguns africanos, é como os Estados Unidos para alguns brasileiros: terra de oportunidades, onde o sol sempre brilha e os talentos são reconhecidos. O atravessador Sisko fala para os dois primos que não é bem assim: existem até pessoas em situação de rua na Europa, algo em que os nossos personagens não acreditam. Foi conversando com imigrantes que o diretor e co-roteirista Matteo Garrone se baseou para criar o filme. Segundo Garrone, as travessias destes imigrantes são as epopeias dos tempos modernos. Sobre seu processo criativo de dar voz aos jovens migrantes, Garrone afirma:
“Para poder contar sua história repleta de perigos por dentro, tive que mergulhar no mundo deles, que é tão distante do meu. Para conseguir isso, tive que construir uma relação de colaboração constante com meninas e meninos que viveram uma situação horrível e que me orientaram durante a concepção do filme. Durante muito tempo, tive dúvidas sobre a minha legitimidade para contar esta história, mas é a história deles que eu conto. A chave foi, para mim, poder contar com eles tanto em frente quanto atrás das câmeras, para a abordagem ser o mais autêntica possível, evitando qualquer didatismo e, em vez disso, permanecendo como um mensageiro discreto.”
Tendo estreado no Festival de Cinema de Veneza, “Eu, Capitão” foi aplaudido de pé durante 13 minutos. No festival, o filme ganhou doze prêmios, incluindo o Leão de Prata para a direção de Garrone e o prêmio Marcello Mastroianni de atuação para o protagonista Seydou Sarr, um jovem senegalês de apenas 17 anos que nunca havia saído de seu país, mas com o filme pôde inclusive conhecer o Papa numa exibição no Vaticano.
Mas o filme não escapou de uma polêmica. O diretor de elenco marroquino Henri-Didier Njikam teve o visto negado para entrar na Itália e participar do Festival de Veneza. Os responsáveis da imigração justificaram que não era possível garantir que Henri não aproveitaria a situação para ficar indefinidamente na Itália. Ao ser tratado como um migrante de propósitos escusos, Henri-Didier, de pele negra, culpou o racismo e a xenofobia dos funcionários da imigração pelo episódio.
Na travessia, os primos se transformam “de humanos em commodities e em animais”. A própria mídia alimenta essa animalização, mostrando, como lembrou Garrone em entrevistas, só o momento final de chegada à Europa, em meio aos corpos que pereceram no oceano. Um dos co-roteiristas e ele próprio um imigrante, Mamadou Kouassi, espera que compartilhar sua história com o mundo possa trazer mudanças na maneira como os migrantes são tratados. “Eu, Capitão” já traz uma mudança de perspectiva, e sua indicação ao Oscar garante visibilidade e a tão necessária urgência do tema.
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