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Festival do Rio: “Rachel” e “Petróleo Bruto” – mesmo tema?

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“Petróleo Bruto” e “Rachel” são documentários que mostram que o mundo se divide em dois lados: o bom e o mau. Ambas as forças representadas pelos ocidentais. No meio delas, as vítimas, seres que os maus esmagam e consideram insignificantes, quando não incômodos, e que são defendidos pelos bons.

As duas películas nitidamente se posicionam em favor de uma tese, o que de forma alguma tira seus méritos. Um documentário não perde seu valor por ser panfletário, como já nos mostrou Michael Moore.

Rachel conta a história do atropelamento, em março de 2003, por um trator israelense na Faixa de Gaza, da americana Rachel Corrie, de 23 anos. A ativista, que faleceu em função do incidente, se colocou à frente da máquina, buscando obrigá-la a parar, para que não derrubasse a casa de uma família de palestinos, pobre e inofensiva, que cometeu o imperdoável crime de viver próxima à área onde Israel decidiu construir o muro que separa aqueles árabes dos seus colonos. Decididos a criar uma zona de segurança até uma certa distância do muro, os israelenses derrubam o que estiver em seu caminho, e isso inclui a casa de centenas de famílias palestinas. O que estiver em seu caminho? Quando na frente do trator se posiciona um branco ocidental, a reação parece ser diferente. Mas o que, então, levou ao atropelamento da ativista americana? É a isso que a diretora Simone Bitton, nascida em Marrocos, filha de judeu, criada em França e Israel, busca responder nos 100 minutos (poderia ser um pouco menos) de filme, apurando fatos, sem, contudo, negligenciar o lado humano. A investigação é intercalada por leituras de trechos do diário de Rachel, familiarizando o espectador com suas motivações. Outros ativistas, assim como palestinos e alguns israelenses, são ouvidos, dando um panorama geral da questão e, sobretudo, dos sentimentos envolvidos. É impressionante vermos como uma pessoa normal e em geral gentil, tomada por um coletivo sentimento doentio de ódio étnico, pode chegar ao ponto de atirar em casas e pessoas inocentes, como numa brincadeira, apenas por pertencerem a determinada etnia. Ao assistir a esse tipo de coisa, o espectador fica cético quanto a uma solução pacífica e a curto ou médio prazo à questão judaico-palestina.

crudePetróleo Bruto trata de uma intensa e devastadora poluição supostamente causada pela Chevron/Texaco na Amazônia Equatoriana. A exploração petrolífera pela companhia teria utilizado os métodos mais baratos e, portanto, mais poluentes. Isso gerou a contaminação de uma imensa área, incluindo seu subsolo e rios, deixando nações indígenas sem água potável. Por isso, desde o início dos anos noventa, os índios da região bebem água cheirando a óleo, o que vem ocasionando desenvolvimento de câncer em inúmeras pessoas, a maioria desde cerca dos dezoito anos. Recém-nascidos apresentam, quando menos grave o caso, problemas de pele, e incontáveis pessoas já morreram por complicações possivelmente causada pela água e solo contaminados.

Em razão do impressionante quadro, foi iniciado um processo que já se arrasta há mais de uma década e possivelmente durará outra mais. O documentário conta a história deste processo e dos seus principais personagens do lado dos índios, especialmente dos advogados Steven Donziger, norte-americano, e Pablo Fajardo, equatoriano vindo da Selva Amazônica, que conseguiu formar-se em Direito e, com a ação judicial, tornou-se quase uma celebridade internacional, e um símbolo da causa. Na segunda metade do filme, inesperadamente entra em cena Trudie Styler, esposa do pop star Sting. Sua simpatia e atuação em prol dos interesses dos indígenas é fundamental para atrair atenção para o caso, acelerando o processo e aumentando a simpatia popular e da elite governante pela causa. Contudo, ela não consegue promover o milagre de trazer celeridade ao emperrado sistema judiciário equatoriano.

Chama atenção em ambos os documentários que os bons e maus feitores, capazes de fazer o enredo caminhar, são os ocidentais. Em Rachel, o exército israelense (segundo alguns, sua pátria seria um quartel general do Ocidente no Oriente Médio) representa o lado sombrio do Ocidente, ao passo que os ativistas são os salvadores. Em Petróleo Bruto, a Chevron é o diabo que vem tirar os índios do seu Jardim do Éden, ao passo que Trudie Styler é a heroína que vem de terras distantes, superando difíceis obstáculos, para salvar os pobres primitivos dos seus algozes. O que se nota é que nos dois filmes os ocidentais protagonizam a história, deixando as pessoas em função das quais litigam, em segundo plano. Longe de ser uma falha de roteiro (ao contrário, é perfeitamente seguida a clássica “saga do herói”), isso é a demonstração do domínio da cultura ocidental, aquela que pela força faz a história marchar, e só esta própria força é capaz de opor-se a si mesma, posto que as demais foram esmagadas. Apenas um ocidental tem alguma chance de fazer um tanque do Ocidente parar. Apenas um ocidental é capaz de interromper a matança de índios. Hoje, a vida de um não-ocidental é desprovida de qualquer valor até que um ocidental afirme o contrário. O Ocidente só tem ouvidos para ele mesmo, até quando a razão do barulho é um outro que há muito já grita com um megafone a uma distância muito menor. Contra o Ocidente, ele próprio. Similia similibus curentur.

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2 Comentários

  • Queria parabenizar o artigo e aproveitar para comunicar minha decepção por não ter podido assistir o final do filme, posto que, a lâmpada do projetor queimou e fomos retirados da sala no dia 4/10 na sessão de 21.30h.
    Apesar dos protesto( a sala estava lotada) e de uma lâmpada que chegaria mais tarde, não nos foi dado o direito de assistir o final pq outro filme seria projetado e os espectadores deste não podiam esperar 30 minutos!!!!!

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