Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo de Karim Ainouz e Marcelo Gomes, longa brasileiro da Première Brasil em competição, é um filme que sintetiza e aglutina os últimos trabalhos de seus dois diretores. Ele reúne a imagética sentimental, intimista e colorida do diretor de Madame Satã e O Céu de Suely à secura dos planos do diretor de Cinema, Aspirina e Urubus.
Neste filme, o narrador protagonista (a voz é de Irandhir Santos) é um geólogo que, em viagem solitária de trabalho, percorre de carro as trilhas do sertão para avaliar a condição geológica dos terrenos por onde irá passar o canal através do qual correrão as águas da transposição do rio São Francisco. A voz é em off e o narrador jamais aparece, com exceção de sua sombra no final. Seu principal objeto de estudo são as “falhas tectônicas” dos terrenos. Logo descobrimos que o narrador não está apenas numa viagem de trabalho “porque precisa”, mas também numa fuga sentimental, depois de um “pé-na-bunda” que recebeu da namorada botânica. E assim, vai atravessando as miseráveis cidades nordestinas de beira de estrada, onde um povo anônimo e esquecido vive desamparadamente sua sina silenciosa.
Assim como a personagem Hermila de O Céu de Suely, o protagonista vive a indefinição entre o retorno e a continuação sem fim de sua viagem, entre a esperança de um reencontro com o amor passado e o desejo de romper com este mesmo passado num movimento de libertação. Não por acaso VIAJO PORQUE PRECISO… começa de forma semelhante ao filme anterior de Ainouz, com a canção sentimental Sozinho de Peninha da década de 70 e o colorido desbotado das imagens simulando uma visão nostálgica e idílica do passado recobrindo a percepção do presente.
Como no filme de estréia de Marcelo Gomes, este filme é também um road movie sertanejo e a secura das imagens em preto e branco do primeiro é trazida para o tom monocórdio da narração desiludida do protagonista.
Road-movie solitário que atravessa as despovoadas e desoladas cidades do Nordeste que margeiam as estradas rodoviárias das BRs, o filme mostra o que O Céu de Suely já havia abordado: tais cidades se transformaram em verdadeiros centros de prostituição ao ar livre. Desabitadas de homens que emigraram, as mulheres que permanecem se viram como podem.
O tom arrastado do filme simula a inércia deprimida do protagonista cujo desejo vai aos poucos se afirmando de fazer uma viagem sem fim, ou retorno, satisfazendo-se com as moças que encontra pelo caminho. Como o tom da narração jamais se altera, o filme arrisca tornar-se monótono em algumas partes. No entanto, este andamento lento e reflexivo do enredo vai sendo preenchido por imagens de colorido lírico. Mais experimental que seus filmes iniciais, este é quase um filme-poema pela beleza dos matizes dessas imagens.
O filme é uma espécie de Bye-bye Brasil ao avesso: não a descoberta de um Brasil profundo, mas o encontro com uma realidade anônima e anêmica. Se no filme do Cacá Diegues é a televisão que veio transformar o interior para descaracterizá-lo, ou como em Cinema, Aspirina e Urubus, serão os filmes publicitários e a aspirina os vetores de progresso, aqui é a expectativa da transposição que longe de trazer alento parece prometer desaparecer um país sem rosto, distante de qualquer ideal de nacionalidade.
E é neste aspecto que surge o efeito “Eduardo Coutinho” que é uma novidade estética no estilo dos diretores. Entremeado de entrevistas com os habitantes locais, o filme se depara com o mesmo dilema ético dos filmes do diretor carioca: não será a exposição cinematográfica da vida desses habitantes anônimos, em particular das moças prostituídas, uma forma de invasão de privacidade? Privacidade esta que mal é reconhecida. Num dos trechos mais importantes, o narrador protagonista quase ordena ou obriga a uma moça que soletre o nome da boate em que trabalha, que ela mal se lembra.
O filme tem, de melhor, esta dialética entre a viagem pessoal e sentimental do narrador e a questão acadêmica e política sobre os benefícios ou malefícios da transposição do Rio São Francisco, afinal a maior obra da engenharia nacional desde a construção de Brasília. Torna-se enfim um documento histórico, pois retrata algumas das paisagens ou vilarejos que serão inundados. Sem se definir claramente por solução alguma, o filme deixa subentender de viés que as águas do rio virão como um alívio a um sofrimento sem nome. Questão que se complica mais quando os créditos anunciam que o filme foi patrocinado pelo Ministério da Cultura…
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