A bíblia é um livro permeado por conflitos, sempre pautados na relação da fé que une o homem à Deus. Todos os seus textos, parábolas e metáforas apontam para essa inter-relação. O diretor Darren Aronofsky (de forte personalidade estética e uma certa obsessão por protagonistas que se justificam em suas pertubações pessoais) conseguiu enfim dar forma a seu projeto antigo: retratar a saga bíblica de Noé e sua arca. O desafio foi tamanho que o resultado absorve a veia conflituosa de sua matriz literária: o filme oscila entre o preciosismo estético-narrativo do diretor e a grandiloquência burocrática do gênero épico. É admirável o ganho dramatúrgico que a história apresenta ao dramatizar – com fortes doses de licença poética – a relação entre fé irrestrita e posicionamento familiar do protagonista. Na verdade a trama já começa expandindo a versão, ao usar o apócrifo Livro de Enoque, partindo da sedutora história dos anjos caídos, elementar no Velho Testamento. O roteiro, de Ari Handel, com o próprio Aronofsky, costura muito bem o drama que se estabelece como símbolo máximo do discurso empreendido pelo diretor, a cerca de como a fé pode ser relativizada (ou seria o homem?). Apesar do papel de Anthony Hopkins ser um tanto mal contextualizado, as atuações de Jennifer Connely e da cada vez mais interessante, Emma Watson são algo além do comovente. E Russell Crowe é sempre bom, mas nunca mais saiu da composição visceral de Gladiador.
Se Aronofsky foi propositadamente, digamos, esquizofrênico, até pela referência essencial da bíblia, eu não sei, mas o filme é resultado de dois extremos: o excesso de deslumbramento com as dimensões épicas, mitológicas e de significado religioso para o mundo inteiro, que refletiu numa história estruturalmente esquemática, com os tiques mais surrados do gênero e claro arremedo de ideias para sustentar as poucas páginas que a bíblia entrega da história. Por outro lado, o cineasta mantém seu vigor ao ilustrar seus defeitos e estabelecer suas qualidades diante de uma visão (ateísta) sobre crença divina. E como isso faz do indivíduo uma contradição em suas próprias fixações de fé. No fim, “Noé” é uma parábola um tanto desequilibrada por seus conflitos. Assim como a bíblia que a apresenta, cabe a você aceitá-la da forma que lhe convém.
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