“O poder sem moral transforma-se em tirania”
A frase do filósofo espanhol Jaime Balmes poderia se entendida como a síntese do governo armamentista de Bush, na América pré-Obama. O ex-presidente americano revelou-se, em dois mandatos seguidos, um esboço mal justificado de um estadista que segue princípios próprios sempre nivelados de uma vaidade política que resvala em ações equivocadas e, como tudo nos EUA, em escala global.
Em qualquer análise sobre economia mundial (e suas desinências) sempre chega-se no ponto do questionamento sobre qual a herança prática desse governo não só para o presidente posterior, Obama (que consegue administrar o país de forma irregular mas aparentemente responsável), como para o país em si. Teria Bush contribuído ainda mais com a relação de ódio que o Oriente Médio tem com a nação? Sem dúvida. Mas o mais impressionante é que enquanto o ex-presidente republicano estava preocupado em penetrar suas influencias em territórios externos, seu governo doméstico era displicente como na total ignorância no trato com New Orleans, assolado terrivelmente pelo furacão Katrina (fato este em que a imprensa ianque mostrou-se assertivamente sagaz em seu nível de criticidade) ou na corrupção que vinha corroendo os pilares intocáveis da Casa Branca.
E é nessa ferida que o maravilhoso filme Jogo de Poder toca ao ampliar cinematograficamente o vergonhoso escândalo envolvendo uma ex-agente secreta da CIA, seu marido e os mais altos cargos de poder da corja presidencial americana da época.
Baseado no livro Fair Game: My Life as a Spy, My Betrayal by the White House que revela de forma explícita como a agente da CIA Valerie Plame Wilson e seu marido, o ex-diplomata Joe Wilson foram vítimas de uma ação de vingança do Governo, uma vez que Joe publicou um revelador artigo no The New York Times em que desmentia a justificativa estadista de que havia armas de destruição em massa para provar a necessidade da iminente Guerra do Iraque. Esse artigo gerou tamanha repercussão que levou a condenação de Lewis Libby, então chefe de gabinete do vice-presidente Dick Cheney.
O livro ganhou estofo dramatúrgico no filme Jogo de Poder (Fair Game, EUA, 2010), com direção interessantíssima de Doug Liman, com Naomi Watts e Sean Penn vivendo o casal protagonista. Liman, que já havia demonstrado domínio na urgência estética dos fatos em filmes como o primeiro da trilogia Bourne: Identidade Bourne, eleva essa necessidade ao extremo, auxiliado por um roteiro que se coloca sempre de forma factual para que a compreensão do inter-locutor se dê pela ação do que acontece não pela ideologia do que se conhece. E por mais que a forma para tal busque fugir de paradigmas, o resultado final (até pelo que já se conhece da trama, amplamente exposta na mídia do planeta) chegamos a conclusão (quase clichê) de que a sujeira vem mesmo de cima.
Valerie era especialista em armas de destruição em massa na CIA. O governo acreditava que ela havia mandado seu marido viajar ao Niger, em 2002, para comprovar a tal ligação entre as indústrias locais de urânio e o ditador Saddan Hussein. Pois foi após essa viagem que ele escreveu o artigo bombástico dizendo que não existia nada disso. Cerca de uma semana depois desse artigo a identidade de Valerie Plame foi revelada, trazendo consigo danos irreversíveis tanto na lado político quanto no pessoal.
O thriller equilibra essa reação nos dois campos na vida de Plame de forma absolutamente plausível, inclusive retendo excessos que um caso como esse pode gerar (a cena de uma familiar de Valerie espantada com a revelação e indagando se ela já havia matado alguém já simboliza muita coisa na história). Naomi, ótima como de costume, foi a escolha acertada para o papel, dado o alto grau de humanidade que imprime em cena. E é muito bom ver Sean Penn não querendo crescer mais que seus personagens. Mas o grande destaque do filme é sem dúvida a sua natureza em si. Uma trama que roteirista nenhum bolaria com tanto requinte e engenhosidade que a vida traz.
Pela extrema capacidade de radiografar um importante fato real e ainda ser um exemplo do bom cinema americano, o filme deveria ser melhor valorizado do que apenas ser o “único filme americano entre os competidores do Festival de Cannes 2010”.
O fim do filme é de pessimismo. Afinal, trata-se de uma história verídica. E a frase de Jaime Balmes com isso tudo ainda ganha um adendo: “O poder sem moral transforma-se em tirania… mas nunca deixa de ser poder, ainda que sem a tal da moral.”
Parece que o tipo de discussão que um filme desses realmente coloca em cena é quais mecanismos existem para impedir algo que o mundo sabia ser um jogo de ilusão e ninguém pôde impedir. Não é o poder sem ética, porque, pensando bem, há toda uma "engenharia" de valores que serviu de base para as decisões que a América tomou…. Mas porque o mundo assistiu e se deixou convencer passivamente (ou não conseguiu fazer nada)? Enfim, pessoas alertavam e mesmo assim o mundo foi refém dos valores americanos. Nem tirania, nem falta de ética.
O que vc diz tem fundamento, mas o filme parte de um fator interno e só encontra reverberação externa por isso que vc alega que não houve: tirania (na idiossincrática forma de exercer o poder) e falta de ética (no corporativismo final que não culpou os culpados)