No ano passado tive meu primeiro contato com a escrita de Scholastique Mukasonga quando nosso clube do livro virtual decidiu ler “A Mulher de Pés Descalços”. Foi uma leitura bastante etnográfica, e surpreendentemente fluida apesar de seu conteúdo pesado e cheio de episódios e descrições para encher os olhos de antropólogos e também de leitores comuns. Quando eu soube que um filme foi adaptado de outro livro de Scholastique, também parte de sua trilogia, fiquei curiosa para conferir o resultado. E valeu a pena.
A história começa em Ruanda, no ano de 1973. O cenário é um colégio interno religioso só para meninas, onde há uma cota para Tutsis: 10% das vagas são destinadas a garotas deste grupo. A questão dos Tutsis com os Hutus não atrapalha as relações das meninas no internato: elas não são tratadas de maneira diferente por causa do grupo, e a camaradagem entre elas é garantida, com poucas exceções.
A única preocupação das meninas do instituto era com o nariz da estátua da Nossa Senhora do Nilo, mas um dia a realidade bate à porta, graças a uma mentira contada por uma das garotas. Chega o momento em que novas gerações repetem ladainhas preconceituosas ouvidas dos mais velhos, dos Hutus que comparam os Tutsis aos comunistas. De repente, a escola se torna um lugar muito perigoso para as meninas Tutsis, entre elas Virginia, alter-ego de Mukasonga.
Como acontece em muitos filmes que se passam em um internato, não há uma protagonista: cada hora o foco é dado para uma das meninas. Mais do que uma convenção dos filmes com esta temática, a falta de protagonista vem do material escrito: como um livro de ficção baseado em memórias, “Nossa Senhora do Nilo”, de Scholastique Mukasonga, não tem uma garota só no papel principal, focando em uma menina diferente a cada capítulo. Assim sendo, aprendemos a nos importar com cada uma das meninas do instituto: Modesta, Imaculada, Frida, Gloriosa, Veronica, Virginia e todas as outras.
Há interessantes debates levantados sobre memória. Quando a freira professora diz, ao ser questionada por uma das alunas que quer estudar os reis ruandeses, que “a África é para [estudar] Geografia, a Europa é para a História”, temos um debate pronto sobre eurocentrismo e perigos de não conhecer a história de seu próprio país. Pouco antes disso, nos arquivos da escola, uma das meninas encontra imagens de antigos governantes com os rostos cobertos por um X vermelho, numa tentativa de apagar a História.
A presença do homem branco é pontual em Nossa Senhora do Nilo. Nas redondezas vive um deles, Fontenaille, espécie de arqueólogo amador que está mais interessado em questões científicas do que em questões humanas. O exoticismo é a lente pela qual ele vê as meninas em particular e os Tutsis de modo geral, se preocupando menos com seus destinos e mais com o folclore por trás deles.
A divisão dos ruandeses entre Tutsis e Hutus é completamente arbitrária e foi levada a cabo pelos colonizadores belgas no começo do século XX. Seguiram-se anos de animosidade crescente, que culminaram em um massacre na década de 1990, após o presidente Hutu ser assassinado. Na ocasião do massacre, a ONU abandonou o país e mesmo Hutus moderados – que não eram coniventes com a chacina – foram perseguidos e assassinados.
Scholastique Mukasonga foi uma das muitíssimas pessoas que escaparam de Ruanda antes ainda do massacre Tutsi, no qual a escritora perdeu 37 parentes. Ela tem em comum com o diretor do filme, Atiq Rahimi, o status de apátrida: Rahimi fugiu de seu país natal, o Afeganistão, na década de 1980, e, como Scholastique, se radicou na França. Rahimi também é escritor e assina o roteiro do filme Nossa Senhora do Nilo, tendo recebido sempre a aprovação de Scholastique, que afirmou: “Ele é afegão, eu, ruandense, temos muito em comum. Eu também acompanhei cada passo do filme, li diversas versões do roteiro. O que era mais importante para mim, é que fosse filmado em Ruanda, no mesmo contexto do romance.”
Um genocídio não acontece da noite para o dia. Vinte anos separam os acontecimentos de Nossa Senhora do Nilo e a guerra que matou um milhão de Tutsis em Ruanda. Assim como outros filmes sobre o massacre – como o famoso e superdidático Hotel Ruanda (2004) e o mais recente e obscuro, porém não menos importante Árvores da Paz (2022), Nossa Senhora do Nilo é um filme que chega a servir como fonte histórica, para conhecermos as raízes de uma tragédia para que ela nunca se repita.
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