Fernando Pessoa dizia, sabiamente, que o “próprio viver é morrer” e João de Santo Cristo de Faroeste Caboclo, filme vigoroso do estreante René Sampaio, pauta toda sua (auto) narrativa sobre a urgência da vida até para as consequências de sua trágica morte. A música-hino do Legião Urbana já era toda mimetizada por uma dramaturgia, digamos, sonora; e sua transposição para o cinema demandaria certa lucidez da palavra frente às necessidades da imagem.
O filme, apesar de certas liberdades criativas, acompanha a canção. João de Santo Cristo (Fabrício Boliveira, visceral), após perder a mãe pela seca do local e seu pai, que morreu por um tiro de um soldado, decide deixar o marasmo da fazenda só pra sentir no sangue o ódio que Jesus lhe deu. Vai para Brasília atrás de um tio bastardo, seu nome era Pablo (César Troncoso) e lhe deu algumas oportunidades, começa a trabalhar como aprendiz de carpinteiro, mas seu tio peruano tinha outros planos, a maconha e ele passa a ser seu principal vendedor e logo logo os “maluco” da cidade souberam da novidade, causando a fúria em Jeremias (Felipe Abib, ótimo), um traficante de renome que decidiu que com João ele ia acabar. Em uma fuga da polícia, João acaba conhecendo Maria Lúcia (Ísis Valverde), filha de um senador, e a “opereta” ganha contornos épicos e trágicos, numa Brasília banhada por reflexos de uma juventude em crise de perspectivas.
O desafio da perigosa adaptação foi cumprido à risca. O frescor de René aparece já nos primeiros eloquentes minutos de projeção e vão se estabelecendo ao longo da história. Existe uma preocupação assertiva em fugir dos arquétipos, mesmo estando trafegando num gênero tão marcadamente simbológico. O filme tem sim alguns defeitos. Dentre eles, a trepidante construção dramática da relação/obsessão de Jeremias com Maria Lucia. E o clímax final que demonstra levemente a inexperiência do diretor em construir suas marcações. Mas nada que tire o brilho do filme como um todo. René consegue com que a grandeza da história extrapole até seu viés mítico, tanto que as alterações da letra original de Renato Russo passam quase imperceptíveis. A mais interessante delas é a figura do protagonista que no cinema se impõe como um árido anti-herói e na música possuía um viés quase barroco. A chave do universo criado pelo cantor está lá: o de que a tal ajuda para “essa gente que só faz sofrer” talvez estivesse absorta dentro dela mesma, em seus fantasmas interiores. Fernando Pessoa tinha razão. Renato tinha poética. Cabe a nós ter a assimilação.
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