O cinema é um espelho dos nossos tempos. Se na vida real temos de lidar com a constância da presença das redes sociais e aplicativos de trocas de mensagens na nossa vida, balizar nossa persona online com todo o cuidado, lidar com viralização de conteúdos nem sempre agradáveis e talvez até com a cultura do cancelamento, era apenas questão de tempo até que estes temas invadissem também o cinema. Um filme sobre o cancelamento veio, um filme nacional tão necessário para, se não acrescentar a ele, acender a chama de um debate tão importante.
Nos primeiros minutos do filme, já encontramos nosso protagonista cantando uma música com letra sugestiva: “Não tô aqui pra aceitar o que aconteceu. Prefiro morrer do que me esconder. Mentiras, ameaças não vão me intimidar.” A canção sobre revolta popular é tomada como uma afronta pelo público, que começa a jogar objetos no palco, forçando o fim do espetáculo. A razão para essa interpretação de afronta é um vídeo viral onde o vocalista da banda, Aurélio Sá (Paulo Miklos), é visto atrapalhando uma abordagem policial que acabou com a morte do policial envolvido. A viralização do vídeo gerou a hashtag #AurelioAssassino e acabou de vez com a privacidade e a paz do músico.
A noite terrível de Aurélio toma um novo rumo quando ele conhece, em frente à sua casa onde uma pequena porém raivosa multidão o aguardava, a jornalista Helena (Dandara de Morais), que deseja ouvir a versão do músico para apurar os fatos. A personagem – que serve para lembrar a importância do jornalismo investigativo em tempos em que ele é tão esquecido e menosprezado – inspira Aurélio a ir até a casa do menino negro também envolvido na abordagem e que agora está desaparecido.
O filme faz muito bem em comentar sobre a origem dos vídeos virais: a minoria deles é feita por pessoas ordinárias que estavam no lugar certo na hora certa. Muitos virais – arriscamos em dizer a maioria – são manufaturados, feitos com todas as más intenções por pessoas que querem se promover nas redes. É interessante que o filme estreie justamente na semana em que se discute com afinco a necessidade de regulação das redes sociais e o PL das fake news. Ainda temos, sobre o assunto, mais perguntas que repostas, sendo uma delas: como evitar que um vídeo viral destrua a vida – ou ao menos tire a paz – de uma pessoa?
O Homem Cordial é mais um filme no qual a ação se desenrola numa única noite. O maior representante deste “subgênero” é o clássico de Hitchcock “Festim Diabólico”, de 1948, mas os exemplos são muitos. Condensar toda a ação em algumas horas de um único dia eleva a carga dramática e nos faz questionar: eu aguentaria a pressão se isso estivesse acontecendo comigo? Passar uma noite como a de Aurélio, afinal, marca a vida de qualquer um.
O diretor, sociólogo de formação, e também roteirista Iberê Carvalho escreveu O Homem Cordial em colaboração com o uruguaio Pablo Stoll. Sobre a centralidade das redes sociais na narrativa, Iberê declara:
“As redes sociais são o ambiente perfeito para que ocorra o efeito manada, ou seja, quando um grupo de indivíduos segue a opinião ou ação de outros de forma irracional, sem analisar os fatos e fundamentos. No filme, vemos como cada comentário, cada postagem, cada curtida ou compartilhamento em uma fake news tem um impacto direto na vida de alguém no mundo real. E esse impacto se potencializa dependendo de que grupo social ou étnico você pertence”.
O Homem Cordial corrobora com a máxima de que “all cops are bastards” (na tradução, algo como “todos os policiais são babacas”). O policial morto na abordagem não estava com a razão ao condenar, ali mesmo na rua, um menino negro. Quando novas abordagens são feitas na noite fatídica, os policiais dão show de violência e soberba. A filosofia “all cops are bastards” está muito mais presente nos EUA, onde a violência policial é uma constante, mas também pode ser encontrada no Brasil, e inclusive no cinema brasileiro: violência policial é tema do filme “A Mãe”, de Cristiano Burlan. Sobre a presença da polícia até mesmo de maneira vilanesca, no filme, Iberê Carvalho comenta: “A polícia, no Brasil, é a instituição criada para garantir, com o uso da força, o privilégio da branquitude”.
O Homem Cordial não é o filme definitivo sobre viralização de conteúdos ou cultura do linchamento – este provavelmente só virá após um distanciamento do que hoje é nossa realidade. O filme não traz respostas – e com certeza nem almejava fazer isso – mas é ponto de partida de questionamentos que precisam ser feitos, por homens e mulheres, jovens e velhos, brancos e negros, por qualquer um que utilize ou seja afetado pelo uso das redes sociais. Mais uma vez, com a palavra Iberê Carvalho:
“Enfim, acredito que o filme pode estimular a reflexão sobre nosso comportamento nesse momento de reconstrução da civilidade, dos direitos humanos e da democracia”.
NOTA 8 de 10
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