Para falar de Vazante, o filme de Daniela Thomas que tem provocado acalorados debates sobre subestimação racial, é preciso falar sobre lugar de fala. A compreensão de um filme é sempre particular a percepção individual. Faz parte da complexidade do audiovisual a chancela que abre para interpretações de acordo com o repertório e a sensibilidade alheias. E suas consequências diante de um debate sobre si.
Daniela fez um filme a partir de uma história contada ao longo dos anos dentro de sua família, datada do século 19, onde um parente de 50 anos casou com uma menina de 12, que nem havia menstruado. Ele então aguardou uns três anos até que ela sangrasse para assim consumar o casamento. Até então a tratava como a criança que ela era, inclusive a presenteando com bonecas. A diretora sempre refletiu muito sobre essa perversidade e fez um filme pautado basicamente nesse argumento.
Passado numa fazenda, no interior de Minas de 1821, em plena disseminação cruel e cotidiana da escravidão, inclusive com chegadas constantes de negros enviados em desumanos navios negreiros da África, o filme se mimetiza no ponto de vista de Beatriz (Luana Nastas, expressiva), menina branca de 12 anos que é entregue pelos pais para casar-se com um fazendeiro português escravocrata.
A fotografia em preto e branco, alinhada à uma direção de arte excepcional, reforçam o impacto desse olhar em seu meio negro e contrastante. Bom, do ponto de partida de Daniela já percebemos que o enfoque de seu filme não seria a escravidão, que tem a função ali de aglutinar a opressão da época quase que numa extensão a opressão de gênero vivida por Beatriz. Por mais que tenha personagens escravos desenvolvidos sim, a questão como um todo realmente é tratada de maneira mais cenográfica (acho o termo subjugado aqui, exagerado). Mas a discussão maior – até como sendo um indivíduo negro esse que vos escreve – é que não se espera empatia aprofundada sobre a escravidão vindas de um branco. Eu, particularmente, não esperaria de Daniela Thomas um filme seminal sobre o tema.
Quando o diretor britânico Steve McQueen, negro, lançou seu (filmaço) 12 Anos de Escravidão, também foi questionado sobre a (falta de) assertividade para lidar com o tema – criticavam que um branco, interpretado por Brad Pitt, era o salvador dos escravos, só que o filme era adaptado de uma história real, contada por um ex-escravo, e essa conclusão – diante disso – realmente aconteceu. A discussão sobre como o tema é retratado no cinema é válida e tem que existir, ainda mais por termos cada vez mais negros como vozes potentes em festivais de cinema (como espectador e como realizador), praticamente um gueto intelectual branco e elitista.
Mas aí entra na discussão o esclarecedor lugar de fala. O do filme, pode se equivocar na abordagem, mas é coerente com sua gênese e com o que representa o discurso da diretora. Vazante é um bom filme (não excelente!), muito bem envernizado e a polêmica que enfrentou foi importante para estarmos atentos a qualquer naturalização cultural da escravidão. Mas essas mesmas vozes veementes que debateram tanto as retóricas do filme, tem que estar por trás das câmeras para, assim como McQueen, Spike Lee e afins, trazer o olhar genuíno e banhado a propriedade sobre a questão. Afinal, o lugar de fala estará ali para colocar a História em sua devida perspectiva.
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