O Mistério de Henri Pick traz um genial enigma literário

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Em tempos de internet, fake news, liberdade de publicação e difusão de informações e pouca checagem de fatos, é comum vermos a autoria de textos e citações sendo atribuída a este ou àquele escritor. Os casos mais comuns são os pensamentos estapafúrdios compartilhados como se tivessem sido escritos por Clarice Lispector, Machado de Assis, Luiz Fernando Veríssimo ou até pelo ator Charles Chaplin. Esses problemas de autoria são exclusividade do mundo online e não existem na mídia impressa, certo? Errado. O Mistério de Henri Pick mostra que o mercado de livros continua sendo terreno fértil para histórias sobre escrever histórias – e sobre investigá-las.

A jovem editora Daphné (Alice Isaaz) está visitando o pai em uma pequena cidade da região da Bretanha quando fica sabendo que lá existe uma “biblioteca dos livros rejeitados”, ou seja, uma sala da biblioteca municipal que abriga apenas manuscritos rejeitados por editoras. Pensando que ali pode estar uma grande obra esperando para ser descoberta, ela vai até a biblioteca. E lá encontra o que procura: um precioso manuscrito, de prosa brilhante, intitulado “As últimas horas de uma história de amor”. O manuscrito é assinado por Henri Pick, um morador da cidadezinha.

Henri Pick era dono de uma pizzaria. Era: ele morreu há dois anos. Ao visitar a viúva de Henri, Daphné obtém a autorização para publicar o manuscrito. Ela também deixa a família Pick abismada: Henri aparentemente nunca demonstrara interesse pela escrita, mas pela máquina de escrever e o livro de um poeta russo encontrados entre suas coisas num depósito, pôde-se ter certeza de que ele mantinha um hobby secreto. Será?

O livro de Pick é um sucesso de público e crítica, até que um crítico literário da televisão, Jean-Michel Rouche (Fabrice Luchini), coloca em dúvida a autoria do livro. Como pode um homem tão simples escrever uma obra tão complexa, sobre amor, morte e literatura russa? Essa hipótese enfurece Daphné e também a filha de Pick, Joséphine (Camille Cotin). Demitido por causa da conduta ao levantar esta hipótese, Rouche fará da busca pela verdadeira autoria da obra sua missão e obsessão.

Ora, Henri Pick poderia ter uma vida secreta, uma aspiração que nunca compartilhou com ninguém, e poderia muito bem cultivar um estilo literário diferente do que demonstra em cartas, por exemplo. O próprio Fernando Pessoa, inclusive citado no filme, não tinha um estilo diferente para cada um de seus heterônimos? Rouche descarta de cara essa hipótese. Para ele, Henri Pick só pode ser uma fraude literária.

Conforme citado por uma personagem, dona da editora que publica o livro de Henri Pick, na França há mais escritores que leitores – e ela arremata que um terço dos franceses escreve. No Brasil isso também é verdade: embora seja pouco provável que um terço dos 200 milhões de brasileiros escreva, há muitos escritores e aspirantes a escritores em um país em que a maioria não tem o hábito da leitura.

O Mistério de Henri Pick é um filme inteligente. Além de apresentar um enigma que a todo momento surpreende o espectador, não sendo óbvio, o filme também é divertido, cheio de boas piadas. Embora o contraste do urbano representado por Rouche com o rural da figura de Joséphine seja a fonte mais óbvia de piadas, ela não é usada à exaustão, dando espaço para outras fontes de riso.

Mais de um filme apresentado na décima edição do Festival Varilux de Cinema Francês trata dos poderes da literatura. O Mistério de Henri Pick é um destes, mostrando como a literatura é capaz de unir pessoas. E o poder do cinema de nos surpreender? Ah, este já é bem conhecido por todos nós.

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