Quando foi lançado em 2000, “Corpo Fechado” não foi muito bem compreendido por parte do público e da crítica, ainda impactados com o resultado obtido pelo diretor M. Night Shyamalan, “O Sexto Sentido”. Afinal, muitos tinham a expectativa estar diante de um thriller que seria uma espécie de continuação da saga do menino que via gente morta e tentava lidar com esse estranho dom.
Shyamalan queria, na verdade, externar seu amor pelas histórias em quadrinhos ao contar uma história sobre um homem que, após sobreviver a um terrível acidente de trem, passa por uma jornada para aceitar o fato de que é muito mais forte e resistente do que a maioria das pessoas e, no processo, saber qual é o seu lugar no mundo. Com o passar do tempo, o filme acabou sendo mais admirado e considerado um dos melhores que o cineasta já tinha feito.
Muitos anos depois, com alguns acertos e erros que acabaram manchando a sua carreira, Shyamalan surpreendeu o mundo com um renascimento artístico raramente visto, graças ao suspense “A Visita” e, logo em seguida, com “Fragmentado”, que se tornou um arrasa-quarteirão com sua trama protagonizada por um sequestrador que tem um distúrbio que o faz ter múltiplas personalidades.
O que mais surpreendeu é de que o filme, na verdade, fazia parte do mesmo universo criado por Shayamalan para “Corpo Fechado” e era a segunda parte de uma trilogia que o cineasta tinha na cabeça. Com o sucesso de “Fragmentado”, todos os olhos se voltaram para o diretor, para saber o que ele iria fazer em seguida.
Como esperado, seu projeto seguinte foi justamente desenvolver a última parte de sua saga, reunindo todos os seus protagonistas em “Vidro” (“Glass”, EUA, 2019), numa trama que, mesmo com elementos fantásticos, tem como principal tema a crença, algo recorrente em sua filmografia.
É uma pena, no entanto, que com tantas coisas realmente fascinantes, o longa vai por caminhos desnecessariamente complicados e tratados de forma pouco envolvente, que deixam um gosto amargo na boca quando as luzes do cinema se acendem ao final da sessão, embora os fãs de longa data do cineasta podem até se sentirem satisfeito com o que é apresentado na telona.
Ambientada poucas semanas após os eventos de “Fragmentado”, a trama mostra que o especialista em segurança David Dunn (Bruce Willis) está na caçada pelo maníaco Kevin Wendell Crumb (James McAvoy), que está foragido da polícia.
Auxiliado pelo filho Joseph (Spencer Treat Clark), David acaba encontrando o covil de Kevin, mas os dois acabam capturados e vão parar numa instituição psiquiátrica, a mesma onde Elijah Price (Samuel L Jackson), o outrora amigo e mentor de David, também está confinado. O trio passa a ser avaliado pela psiquiatra Ellie Staple (Sarah Paulson), especialista em tratar de pessoas que acreditam ser super poderosas e mostrar que elas são apenas seres normais. Só que Elijah tem outros planos em mente e vai usar sua inteligência para conseguir o que deseja, mesmo que o resultado não seja benéfico para nenhum dos envolvidos.
A primeira parte de “Vidro” é realmente muito boa, mantendo o fascínio que Shyamalan construiu exemplarmente nos filmes anteriores, mostrando como seus personagens evoluíram com o passar do tempo e o confronto entre David e Kevin (principalmente quando uma de suas personalidades, A Besta, se manifesta) é algo que realmente vai deixar os fãs e não-fãs do diretor bastante felizes, assim como as questões levantadas pela personagem de Paulson a respeito do que é real e do que não é, levando o público a ter o mesmo questionamento.
Só que, lá pela segunda parte, o roteiro (também escrito pelo cineasta) começa a perder o fôlego, arrastando a história com situações e elementos que não acrescentam muito à história e podem até causar um pouco de tédio, especialmente para aqueles que não curtem muito tramas mais objetivas.
Além disso, há um nítido esforço de Shyamalan de deixar o personagem de Bruce Willis um pouco de lado, demonstrando um desinteresse do cineasta em tratar com mais profundidade suas questões em relação aos outros dois protagonistas.
Para piorar, o realizador parece não saber muito bem o que fazer com Casey Cooke, vivida por Anya Taylor-Joy. A única sobrevivente do sequestro que movimentou a trama de “Fragmentado” tem muito pouco a fazer aqui e, se fosse simplesmente descartada da trama e aparecesse apenas na parte final ou numa cena pós-créditos (mini-spoiler: não tem nenhuma sequência durante ou ao final dos letreiros), teria bem mais utilidade do que jeito que ficou, o que é uma pena, já que a atriz tem se mostrado uma das mais interessantes da sua faixa etária nos últimos anos, desde que foi revelada em “A Bruxa”.
Mas o que torna “Vidro” realmente decepcionante é como Shyamalan orquestrou seu desfecho, contando com uma das piores reviravoltas já vistas em seus filmes, que apela de um clichê batido que, embora seja defendido por seus admiradores por ser típico de uma história em quadrinhos, soa pouco impactante e anticlimático, além de ser tirado de uma cartola mágica do nada, tirando a força de seu argumento.
É claro que, quem esperava ver um filme com muitos tiros e explosões, como os da Marvel Studios, certamente ficará desolado. Mas a proposta do cineasta de discutir os arquétipos do herói, do vilão e do super-vilão, que poderia render algo bem mais fascinante, acaba diluída por causa das escolhas ineficazes feitas pelo autor.
Primeiro nome do elenco, James McAvoy volta a impressionar com suas transformações de personalidades, como no filme anterior. Só que o ator acaba sendo forçado a fazer isso tantas vezes em cada cena, por causa da imposição do roteiro, que não dá tempo de curtir as metamorfoses de Kevin, já que ele logo pula para outra mudança, e os novos egos mostrados no filme não são tão marcantes quanto os que ele já tinha mostrado como A Fera, Hedwig e Patricia, por exemplo.
É inegável o talento do intérprete do jovem Charles Xavier nos filmes recentes dos X-Men. Bruce Willis, no entanto, acaba sendo o menos marcante do trio principal não por sua atuação, mas porque Shayamalan achou melhor deixá-lo mais periférico em boa parte da história e o astro de “Duro de Matar”, pelo menos, consegue tornar crível o desejo de seu personagem em ajudar as pessoas e combater o mal, como um verdadeiro herói.
Porém, quem rouba realmente todas as cenas é Samuel L Jackson, com o seu frágil porém brilhante Elijah Price, mais conhecido como Sr. Vidro. O ator deita e rola com as ambiguidades de seu personagem, que demonstra sempre estar um passo à frente dos outros com sua inteligência e conhecimentos e mostra como é possível fazer um vilão “pé no chão” fascinante. Afinal, o filme não se chama “Vidro” à toa.
Quem também merece destaque é a “novata” Sarah Paulson, como a médica que luta para provar para o trio principal (e para o público também) que tudo não passa de um delírio, sempre com muito talento. Anya Taylor-Joy faz o que pode, mas acaba sendo desperdiçada (pelos motivos já descritos antes) e Spencer Treat Clark e Charlayne Woodard (a mãe de Elijah) voltam a seus papéis de “Corpo Fechado” de forma eficaz.
Com um desfecho que lembra bastante o de “Watchmen” (tanto no cinema quanto nos quadrinhos), “Vidro” certamente vai dividir o público e causar debates tão acalorados quanto àqueles causados por “Batman Vs Superman: A Origem da Justiça”. E isso não deixa de ser um mérito, já que é interessante ver como o cinema pode proporcionar tantas discussões populares.
Talvez o filme não chegue a ser tão cultuado quanto o primeiro da série, ainda o melhor dos três. Shayamalan se despede do universo que ele mesmo criou de maneira inesperada e controversa. Mas ele poderia ter mais carinho e cuidado dele bem melhor em seu epílogo.
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