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Entrevista com o escritor Cesar Cardoso

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O escritor carioca Cesar Cardoso, além das atividades na seara das letras e expressões, também é fotógrafo. Formado em Letras pela UFRJ. Escreveu para a revista Caros Amigos, para os jornais O Pasquim e O Planeta Diário e para programas de TV como TV Pirata, A Grande Família, Sai de Baixo e Toma Lá Dá Cá. Também teve uma incursão pela literatura infantil na Editora Biruta, com os livros infantis “O Que É Que Não É?” (selecionado para o PNBE e para Programa PNLD Alfabetização na Idade Certa, do Ministério da Educação) e “Você Não Vai Abrir?”. Publicou ainda Capoeira Camará e o livro de contos As Primeiras Pessoas. Cesar está lançando se novo livro de contos, “Urubus em Círculos Cada Vez Mais Próximos” (Editora Oito e Meio), e concedeu uma entrevista à Revista Ambrosia. Confira.

1 – Há em seus contos um trabalho intenso de concisão com a linguagem. De usar todo aparelho dos signos de forma encaixada dentro do espaço do conto. Como você foi desenvolvendo esta forma de narrar?

Cesar Cardoso: Esta concisão é resultado de alguns caminhos que fui traçando em minha literatura. Como dizia Leminski, “quanto menor, mais do tamanho da China”.  Escritores que eu gosto, como Graciliano Ramos e Dalton Trevisan, trabalham com a concisão da linguagem. E mais, vivemos em um mundo de enxurradas: de informação, de consumo e até de adjetivos… Então, a seleção e a concisão são dois métodos, duas formas de olhar o mundo e a literatura que eu prezo e busco praticar. O adjetivo, por exemplo, é sedutor, é fácil. Às vezes, quando não encontramos uma saída para o texto, ele vem se oferecer para ocupar esse lugar. Graciliano, em sua secura, falava com humor que “papel e caneta custam caro”. Então, viva a concisão.

2- Em seus contos, há um trabalho bem interessante sobre o cotidiano das pessoas. Mas ao mesmo tempo há sempre algo insólito e fantástico acontecendo. Como foi dosar estas duas linhas narrativas?   

Meu livro anterior, “As primeiras pessoas” também não é uma simples junção de histórias. Todos os contos são narrados na primeira pessoa. E daí o livro se desenvolve a partir dessa premissa. Neste “Urubus em Círculos Cada Vez Mais Próximos” mais uma vez busquei um projeto. A chave desse livro é partir do cotidiano e chegar ao insólito, ao fantástico. Cortazar dizia que “o conto vence por nocaute”. Foi o que busquei também, tanto na linguagem quanto no enredo. Quando fiz a primeira versão do livro, havia duas vertentes: a questão da violência e a questão do fantástico. O crítico literário e escritor Flávio Carneiro foi quem me apontou isso mais claramente. Então, optei pelo caminho do fantástico.

Os contos às vezes são pequenas cenas de teatro, às vezes namoram com a linguagem poética. E sempre buscam surpreender o leitor e fazê-lo reler e repensar a história. Também trabalho muito com as informações culturais que tenho, da literatura, da música, das artes plásticas. Gosto de pegar estas informações e virá-las do avesso e trazê-las de volta nessas narrativas curtas. Assim, há contos em que a construção da Torre de Babel é vista de uma outra maneira, ou um jóquei numa corrida não consegue nunca alcançar a linha de chegada, se perde numa ciranda sem fim; ou a atuação de uma bailarina se revela uma simples caixinha de música… Assim construí este “Urubus em Círculos Cada Vez Mais Próximos”. Aliás, o título é retirado de uma frase do último conto do livro.

3 – Em uma frase você muda o eixo completo do enredo. Como foi este exercício? O que seu trabalho como roteirista na televisão te ajudou neste trabalho de síntese com a linguagem? 

– Escrevo contos, poesia, humor, literatura infanto-juvenil. E, em todas essas formas, a síntese está sempre presente. É bom não dar tudo para o leitor, deixar no texto lacunas que o leitor vai encontrar e, dessa forma, construir a história junto comigo. O trabalho de roteirista de televisão sem dúvida me ajuda. Sempre trabalhei como roteirista de humor, e no humor você tem que ser sintético. Ele tem um ritmo e, se você se expande demais, você quebra esse ritmo, afrouxa sua cena e perde a graça. Então o humor me ajudou a ter esta capacidade de síntese. Além disso, em tudo que escrevo tem algum tipo de humor. Neste livro, cheguei a um humor mais irônico ou até mesmo sarcástico.

4 – Como foi processo criativo dos contos?  Como você os desenvolveu?

– Comecei fazendo a opção pelo fantástico. Hoje, já não sei mais identificar quais foram os primeiros contos. Mas, a construção deles nasceu de muitas maneiras: uma cena que vi quando voltava pra casa de madrugada, alguma coisa que li, a conversa com amigos num bar, uma consulta médica. Ou simplesmente parei diante do computador e fiquei pensando caminhos, histórias. Aí entra a minha bagagem, o meu baú pessoal e intransferível. Um conto que gosto muito é uma releitura do Sítio do Pica-pau Amarelo, onde o leitor acaba por descobrir que os personagens são bonecos com os quais alguém está brincando. E quem é? A Barbie. Os personagens são bonecos da Barbie.

Monteiro Lobato foi o primeiro autor que descobri, quem primeiro me encantou com a literatura. Eu era criança tinha todos os livros dele em casa, tinham pertencido ao meu pai quando ele era criança, e meu avô me contava aquelas histórias. Eu era, e sou, completamente apaixonado pela literatura do Monteiro Lobato, pela Emília e todo aquele mundo. Ainda tenho essa coleção. Então, ele faz parte de minha história literária. E é um prazer e uma homenagem trazê-lo para a minha literatura, para dentro de um conto meu. Um outro exemplo: há um conto de uma bailarina dançando, e esperando pelo aplauso. O que surgem são duas mãos que dão corda numa caixinha de música. Em verdade, ela é uma bailarina rodando numa caixinha de música.

Como me veio essa ideia? Primeiro, a caixinha de música – eu dava sempre de presente para minha avó.  Depois, a minha enteada fazia balé eu às vezes eu fazia o coque nela, muito mal feito e lotado de grampos, coitada. E, por fim, como também trabalho com fotografia, fiz uma série com bailarinas de caixinhas de música. Esses três elementos se juntam e desaguam na linguagem do conto. Assim nasce o conto “Coreografia”, que está nesse livro.

5 – Como foi trabalhar com referências literárias, históricas e científicas? Elas te ajudaram na imagética dos contos?

– Ajudaram muito. Na parte literária, por exemplo, o conto que abre o livro fala da primeira bienal de literatura do Rio, em 1923. Isso nunca aconteceu. E eu boto como grande evento da bienal uma luta de boxe entre Borges e Kafka. Para que Kafka não levasse vantagem, já que Borges já está cego, a luta acontece no escuro. E no final, quando a luz se acende, os dois desapareceram.  Todos esses dados são absurdos. Na minha literatura, gosto de falsear as informações, trabalhar com dados falsos como se fossem verdadeiros. Faço isso em vários contos desse livro. E estou escrevendo outro livro só de informações falsas, como a carta que Camões teria escrito ao governador de Moçambique pedindo ajuda para voltar a Portugal pois estava na miséria; ou a visita de Darwin ao deserto de Atacama, no Chile, para conhecer uma espécie de lontra que sabe usar instrumentos para se alimentar.

Para mim, falsificar dados literários, históricos e científicos é uma ótima maneira de inventar histórias. No meu ponto de vista, nada é neutro, nem a ciência. Tudo pode ser usado da forma que você quiser. No livro “Urubus em Círculos Cada Vez Mais Próximos” há o conto “Himenópteros Fomicídeos”, que é o nome científico da formiga. É a história de um sujeito que passa o dia desenhando formigas. À noite ele dorme e as formigas saem do desenho e o cobrem na cama. Elas o estão protegendo? Vão devorá-lo? O conto não define. Mas eu cito uns quinze tipos diferentes de formigas. E essas informações são verdadeiras. As formigas, onde elas vivem, do que se alimentam, tudo é verdadeiro, eu pesquisei. E me serviu para inventar o conto.

6 – Os desfechos dos contos não se esgotam numa ideia similar. Há sempre uma gama de situações bem diferentes que concluem os contos muito bem. Você os escrevia primeiro? Ia pelo desenvolvimento sequencial da narrativa?  Ou anotava ideias para conclusão?

– Nenhum deles eu comecei pelo final. Sempre me veio a ideia e eu fui desenvolvendo. A primeira surpresa é para mim mesmo. Como é que vou me surpreender nesta história? Que final vou achar? Como vou surpreender sem me repetir? Eu parti de uns 300 contos e cheguei aos cento e poucos que formam o livro. Procurei também dar uma ordem nos contos. Há mais de um conto com o tema da prisão; A ideia da prisão é muito rica. Eu achei 2 contos que trabalhavam de forma diferente um do outro. Como eles tinham o mesmo tema eu coloquei uma numeração e deixei os dois afastados um do outro no  livro. Assim eu fui organizando cada história e o livro. Tem um conto em que o personagem está viajando de trem, adormece e, no meio da noite, acorda. É uma situação comum de viagem, pela qual quase todo mundo já passou. O personagem tenta se situar, descobrir em que pedaço da viagem está. Ele abre a cortina da janela. E o que vê? O planeta Terra brilhando no céu daquela noite escura. Então eu pensei e o leitor vai pensar também: onde diabos esse sujeito está?

7 – A tua epígrafe é do Augusto Monterroso, um escritor que praticava o microconto. Embora não dê para dizer que seus contos sejam microcontos, há uma compacidade da escrita e do conteúdo que parece que nunca é descarte. Você chegou a fazer leituras destes autores deste estilo de escrita?   

– Sim, em épocas diferentes, fiz algumas leituras que acabaram me ajudando a encontrar os caminhos desse livro. Posso citar “A Ovelha Negra e Outras Fábulas”, do hondurenho Augusto Monterroso, a coletânea “Os 100 Menores Contos Brasileiros do Século”, organizada pelo Marcelino Freire, “Os Anões”, da Veronica Stigler, “Jardim Zoológico”, do Wilson Bueno, as obras literárias de Murilo Rubião, Cortázar, Campos de Carvalho. Todos, em alguma medida, trabalham com a concisão, o fantástico e o humor. Assim como Borges e Kafka. Eles são personagens do primeiro conto do meu livro. Kafka retorna em outro conto, onde é morto pelo inseto em que se transformou seu personagem Gregor Samsa. Acho que em qualquer trabalho humano, todo mundo tem que desenvolver suas ferramentas. Eu adoro ler e quanto mais leio, mais me divirto. E mais eu consigo trazer ideias para meus projetos de literatura.

8 – Não tem como classificar seus contos como fábulas. Mas percebi um tipo de ideia moral que fecha muito bem os contos. Como você ia chegando a estes finais sempre surpreendentes?

Neste livro, busquei sempre a surpresa. Os contos namoram com a fábula sim. Vários são fábulas desconstruídas, fábulas pelo avesso, onde a surpresa final transita entre o fantástico e a linguagem da fábula. Muitas vezes trabalho com uma linguagem que aparentemente é muito objetiva, neutra. E é a surpresa que vai desconstruir essa aparente neutralidade. O leitor chega ao final e diz: opa, não era o que eu pensava, deixa eu ler isso de novo. A surpresa é uma forma de jogar o leitor de volta para dentro do conto. É uma forma de não ser um texto fechado, resolvido. O leitor pode imaginar o que ele quiser.

Eu escrevo literatura infanto-juvenil, volta e meia vou a escolas conversar com a criançada que leu algum livro meu. E muitas vezes têm leitores que fazem perguntas que eu mesmo não imaginava. Em meu livro “Quem Pegou a Ponta do Meu Chapéu de Três Pontas que Agora Só Tem Duas?”, o personagem diz: “Roubaram uma ponta do meu chapéu de três pontas. E logo a vermelha, a que eu mais gosto.” E uma garota lá perguntou: “Vem cá, e quais são as cores das outras pontas?” Eu nunca havia pensado nisso. Então eu busco surpreender o leitor, deixando um final em aberto, e este leitor, ao construir sua leitura, também pode me surpreender.

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