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A jornada literária de Vilto Reis e de “Nascida Para o Trono”

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Em “Nascida Para o Trono – Serpentes e Traições” (288 pág.), o escritor Vilto Reis não apenas mergulha nas tradições do gênero épico, mas também as remodela de forma criativa e perspicaz. Ambientado em um cenário inspirado nos grandes impérios africanos, o romance transborda com uma narrativa rica em conflitos políticos e intrigas de poder. Seguimos os passos de Núbia Naja Branca, uma ladra marcada por um passado turbulento, enquanto ela se envolve em uma missão perigosa para roubar o Totem da Serpente. Vilto não só constrói um mundo fascinante, mas também aborda temas contemporâneos, como abuso de drogas, questões de gênero e intolerância religiosa, fornecendo novas perspectivas através de sua narrativa. O livro é finalista do Prêmio Cubo de Ouro 2024, na categoria Melhor Literatura Geek.

Além de suas contribuições literárias, Vilto Reis é um personagem ativo no cenário cultural brasileiro. Fundador do portal Homo Literatus e participante do Podcast 30:MIN, Reis também foi  jurado do Prêmio Jabuti em 2022. Sua jornada como escritor teve início com inspirações como Eduardo Spohr e Daniel Galera, mas foi durante a paternidade que redescobriu sua verdadeira paixão pela fantasia épica. Investindo tempo na leitura de obras clássicas e contemporâneas do gênero, Vilto desenvolveu uma voz única, enraizada em influências como Joe Abercrombie, Andrzej Sapkowski, Karen Soarele e Leonel Caldela.

Se você pudesse resumir os temas centrais do livro, quais seriam?

Os temas centrais do meu livro surgem da mistura entre a realidade contemporânea e a fantasia. Enquanto a fantasia muitas vezes é vista como uma forma de escapismo, no meu livro, ela serve como um meio de explorar e oferecer novas perspectivas sobre questões atuais. Um dos principais temas é o uso abusivo de drogas, onde utilizo elementos de fantasia para explorar as complexidades e as consequências desse problema na sociedade. Além disso, o livro aborda questões de gênero, destacando as diversas formas como a identidade e a expressão de gênero se manifestam e são percebidas em diferentes contextos.

Outro tema crucial é a intolerância religiosa. Através de uma narrativa fantasiosa, o livro analisa como a intolerância e o preconceito podem se infiltrar e afetar as relações humanas, levando a conflitos e mal-entendidos. O interessante é que, quando comecei a escrever, meu objetivo inicial não era abordar especificamente esses temas. Contudo, à medida que a história se desenvolvia, essas questões foram naturalmente surgindo e se entrelaçando na trama.

Por que escolher esses temas?

Escolhi abordar temas como o uso abusivo de drogas, questões de gênero e intolerância religiosa no meu livro por várias razões. Primeiramente, esses são temas extremamente relevantes na nossa sociedade. Ao trazê-los para o contexto da fantasia, eu queria oferecer uma nova perspectiva sobre essas questões importantes, permitindo que os leitores os vissem sob uma luz diferente, talvez entendendo melhor suas complexidades e implicações.

Também acho que abordar esses temas tem um valor tanto pessoal quanto social. Eles refletem minhas próprias experiências e observações sobre o mundo, e incluí-los no livro era uma forma de processar e refletir sobre essas experiências. Além disso, queria chamar atenção para essas questões, contribuindo para o debate e a conscientização sobre elas.

Por fim, enfrentar o desafio de tecer esses temas difíceis dentro de um contexto de fantasia foi algo incrivelmente gratificante do ponto de vista criativo. Foi um exercício de equilibrar a realidade e a ficção, mantendo a narrativa envolvente e significativa.

O que motivou a escrita do livro?

Meu primeiro romance, publicado em 2016, “Um Gato chamado Borges”, finalista do Prêmio SESC de Literatura, era uma obra de realismo, embora temperada com nuances absurdas. Mas, depois da publicação, me perguntei – que tipo de escritor eu queria ser? Um autor de realismo absurdo? Após muita reflexão, decidi arriscar e explorar novos territórios literários. Senti que não estava preso a um único gênero, mas que poderia experimentar e inovar. Foi assim que em 2018, com a iminência do nascimento do meu filho, comecei a trabalhar em um novo romance. No entanto, depois de um evento tão emocionalmente transformador como a paternidade, voltei ao texto e não me reconheci mais nele. Não era o tipo de escritor que queria ser, nem o tipo de livro que queria escrever. Então, nos meses que se seguiram, passei a rascunhar ideias, explorar possibilidades, até que reencontrei minha verdadeira paixão: a fantasia épica.

Como você definiria seu estilo de escrita?

Meu estilo de escrita na fantasia foi fortemente influenciado por autores como Joe Abercrombie, Andrzej Sapkowski e Leonel Caldela, com frases curtas e muita concisão. Esses autores marcaram meu modo de escrever pela maneira como equilibram simplicidade e profundidade. Em Nascida para o trono, busquei alcançar algo similar: um estilo que fosse simples e acessível, mas que, ao mesmo tempo, não comprometesse a riqueza e a força da linguagem.

Um aspecto que adotei em minha escrita foi a inclusão de palavras do português brasileiro com origem africana, como ‘nenê’, ‘moleque’ e ‘cafuné’, entre outras. Essa escolha foi feita para enriquecer o texto com a diversidade linguística e cultural do Brasil, oferecendo ao leitor uma experiência mais autêntica e imersiva.

Acima de tudo, meu objetivo com ‘Nascida para o trono’ é que ele sirva como uma porta de entrada para a literatura, especialmente para aqueles que ainda não descobriram o prazer da leitura. Quero que este livro seja o primeiro de muitos para alguém, assim como os livros de fantasia foram para mim, trazendo novos leitores para o maravilhoso mundo da literatura.

Quais são as suas principais influências literárias? Que livros influenciaram diretamente a obra?

Apenas para citar algumas obras: “Duna”, de Frank Herbert: apesar de ser uma ficção científica, sua estrutura política e feudal inspirou uma nova perspectiva para o universo que queria criar; “Filhos de Sangue e Osso”, de Tomi Adeyemi: a autora incorporou a cultura africana em uma história de fantasia épica, o que me fez repensar o cenário da própria obra.; “A Deusa no Labirinto”, de Karen Soarele, e “A Flecha de Fogo”, de Leonel Caldela: tiveram um impacto significativo no processo de escrita, pois são brasileiros escrevendo fantasia; Trilogia “Mar Despedaçado”, de Joe Abercrombie, e a série “The Witcher”, de Andrzej Sapkowski: fundamentais para ajudar a definir o tipo de linguagem que queria usar no livro, uma linguagem rápida e ágil, diferente dos tradicionais herdeiros de Tolkien; “Céu entre Mundos”, de Sandra Menezes: foi uma referência importante para dar o tom de alguns aspectos do cenário; “Aníbal: O Inimigo de Roma”, de Gabriel Glasman, e “Batalhas Medievais”, de Kelly Devries: foram de grande ajuda, fornecendo um contexto histórico rico que foi usado para informar o universo de “Nascida para o Trono”.

É importante ressaltar que, embora “Nascida para o Trono” seja inspirado nos impérios africanos, não é uma representação histórica exata. Assim como Wakanda nos filmes do Pantera Negra, usei essas culturas como ponto de partida para criar um mundo de fantasia único.

Como foi o processo de escrita?

Desvendar a escrita de fantasia não foi algo fácil. Como autor, me deparei com a falta de vocabulário adequado, com a ausência de palavras exatas para descrever o universo e as ações que minha mente imaginava. Detalhes como descrever um arqueiro e a “aljava” – a pequena bolsa que carrega as flechas, ou o avanço acelerado de um exército, e até que ponto eles poderiam chegar em um único dia, tornaram-se grandes desafios na escrita.

Por causa disso, eu mergulhei na leitura de inúmeras obras de fantasia, tanto clássicas quanto contemporâneas, enquanto também escrevia contos para praticar e desenvolver minha própria linguagem. E foi neste processo de aprendizado e descoberta que, em 2019, nasceu “Nascida para o trono”, ainda sem esse título.

Durante o planejamento da história, experimentei com três protagonistas, resultando em um manuscrito de 180 páginas. Mas ao lê-lo, percebi que não estava satisfeito. Faltava algo. Foi então que percebi que a história não precisava de três protagonistas, mas sim de uma única figura central: Núbia.

Com Núbia como foco, eu reescrevi o livro. Com ela, a história fluiu de forma mais natural, o universo pareceu mais real e as personagens mais tridimensionais. E para ajudar a trabalhar neste novo rumo, utilizei o método Snowflake, que me permitiu criar um enredo mais coeso e personagens mais profundos.

A primeira versão do “Nascida para o Trono” não foi perfeita, estava longe disso. Mas, eu não desisti. Em vez disso, procurei entender onde tinha falhado e como poderia melhorar. A maioria dos escritores iniciantes quando vê que não atingiu o resultado desejado faz o quê? Desiste daquela história. Eu acreditava muito na história que queria contar, só precisava encontrar o caminho para fazer isso. E neste processo, aprendi que cada erro, cada falha, é uma oportunidade para aprender e crescer.

Eu reescrevi, editei, repensei e refiz partes da história várias vezes antes de chegar à versão que vocês vão conhecer em breve. Acredito que uma parte vital da escrita é estar disposto a reconhecer quando algo não está funcionando e ter a coragem de mudar.

Escreve desde quando? Como começou a escrever?

Comecei a escrever de maneira mais séria e focada na universidade, onde estudei Publicidade & Propaganda, mas percebo que a escrita sempre esteve presente de alguma forma. Cresci em Blumenau, uma cidade de Santa Catarina, onde a leitura de ficção não era comum. No entanto, fui influenciado pelas histórias que ouvia do meu pai e das pessoas ao meu redor. Apesar de ter enfrentado dificuldades com a gramática na escola e ter um complexo de inferioridade, esses desafios não me impediram de me aventurar com as palavras.

Minha verdadeira inspiração para escrever veio um pouco antes da faculdade, quando descobri o Nerdcast e a história de Eduardo Spohr, um escritor brasileiro bem-sucedido. Daniel Galera, com seu livro ‘Barba Ensopada de Sangue’, também foi uma grande influência, mostrando que era possível criar histórias em cenários familiares.

O ponto de virada foi a criação do blog literário Homo Literatus em 2011, após uma palestra inspiradora no Festival de Publicidade de Gramado. Esse projeto me permitiu explorar a escrita e a crítica literária, além de me conectar com outros apaixonados por literatura.

Meu trabalho em uma agência de publicidade, onde comecei como redator, também teve um impacto significativo. Ali, aprendi a lidar com prazos apertados, a aceitar críticas e a adaptar minha escrita às necessidades dos clientes. Essa experiência me ensinou a flexibilidade e a persistência necessárias no processo de escrita.

Finalmente, a escrita do meu primeiro livro, ‘Um Gato Chamado Borges’, que foi publicado em 2016, foi um desafio, mas também um aprendizado. Aprendi a não levar a escrita tão a sério e a me divertir com o processo. Isso me permitiu concluir a primeira versão do livro em apenas 22 dias, seguida de um longo processo de revisão até a sua publicação.

Então, minha jornada como escritor começou desde muito cedo, mesmo sem eu perceber. Foi uma combinação de influências, experiências e o desenvolvimento de uma paixão pela palavra escrita.

Como é o seu processo de escrita? Você tem algum ritual de preparação para a escrita? Tem alguma meta diária de escrita?

Meu processo de escrita em “Nascida para o Trono” começou com a inspiração. Eu queria me afastar do universo tolkieniano tradicional, então decidi explorar temas inspirados nos impérios africanos, semelhante à abordagem de Wakanda em ‘Pantera Negra’. Passei semanas consumindo conteúdos diversos — livros, documentários, filmes — para me imergir nesse imaginário.

Quando se trata de planejar a história, eu prefiro uma abordagem mais ágil. Fui influenciado por um Ted Talk da escritora Kate Messner, que propõe uma série de perguntas para entender o mundo da história. Questões como quem detém o poder, quais são as crenças predominantes e como é o dia a dia das pessoas nesse mundo. Esse tipo de questionamento ajuda a criar um universo rico e coerente, mas ainda deixa espaço para improvisação e surpresas durante a escrita.

Durante a fase de escrita de ‘Nascida para o Trono’, enfrentei desafios específicos do gênero de fantasia épica, como a necessidade de um vocabulário específico e detalhes realistas. Após experimentar com contos, eu mergulhei na criação do livro. No entanto, a primeira versão não saiu como esperado, pois o foco se dividia em dois personagens e percebi que poderia ser só em uma. Foi aí que decidi focar apenas na personagem Núbia, reestruturando a história com o método Snowflake e a Estrutura de Três Atores, o que envolveu um mês de planejamento e quatro meses de escrita.

Após escrever o livro, a fase de feedback foi essencial. Os leitores-beta e a leitura sensível desempenharam um papel crucial. Os leitores-beta forneceram insights valiosos sobre ritmo, desenvolvimento de personagens e questões sensíveis. Já a leitura sensível foi fundamental para garantir uma representação autêntica e respeitosa da minha protagonista trans. Ariel Hitz, um autor de livros sobre representatividade trans, foi de grande ajuda nesse aspecto. Já para a questão racial, a leitura sensível foi feita pelo escritor e tradutor Oghan N’thanda, vencedor do Wattys 2018 na categoria “World Builders” e consultor criativo do RPG Afrofuturista O Último Ancestral.

Quanto aos rituais de preparação, não tenho nenhum específico. Minha principal meta é manter a coerência e autenticidade do mundo que crio, e deixar que a história se desenvolva naturalmente.

Quais são os seus projetos atuais de escrita?

Por enquanto, quero focar em divulgar este livro, afinal, não adianta escrever e só lançar. É preciso se aproximar dos leitores e se comunicar, e eu estou ansioso por essas conversas, mas claro que tem outras histórias aqui no forno, quase prontas! Quem me seguir pelas redes e acompanhar meus projetos, logo vai saber das novidades.

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