Tiago Franco é psicanalista e escritor. É autor do livro de contos O olho vesgo (Ateliê Editorial, 2002), publicado sob pseudônimo. Recebeu os prêmios: 1° lugar no V Concurso Municipal de Contos de Niterói, 2007, com o conto “O inconsciente de Schmitz”, incluído na coletânea lançada pelo selo Niterói Livros; e 2° lugar no Concurso Literário da Academia Brasileira de Médico Escritores (ABRAMES), em 2009, com o conto “Wall Street Journal”. O conto “Desapontamentos do dr. Lacan” saiu na coletânea Encontros na estação, organizada por José Castello (Oito e meio, 2012).Tiago está lançando o livro “Onde Os Paranoicos Fracassam”, pela Editora Oito e Meio. Confira a entrevista que o escritor concedeu à Revista Ambrosia.
Tiago Franco: Seu romance tem uma ótima mistura de ficção e reflexão psicanalítica. Como você foi escrevendo-o para não pesar a teoria e ficar com um movimento tão fluido na leitura?
Ambrosia: A ideia inicial era escrever um livro que misturasse ficção e ensaio na mesma medida, onde as reflexões do analista servissem como pano de fundo para o que ia se desenvolvendo, em primeiro plano, com os pacientes no divã. A partir do momento em que as fantasias, sonhos, devaneios e atos falhos de seus pacientes começavam a trabalhar no inconsciente de Freitas, é que se punham em marcha as reflexões e, eventualmente, as digressões sobre psicanálise e literatura. Havia o que nós, psicanalistas, chamamos de movimentos transferenciais e contratransferenciais, isto é, nos quais o paciente transpõe para o analista sentimentos e atitudes relacionados a outros objetos de amor, e do analista para o paciente, respectivamente. Acho que tentar mostrar essas relações entre analista e pacientes em análise foi um dos maiores desafios do romance.
E, tomando como exemplo o que acontecia entre os personagens, eu pretendia que a narrativa avançasse alternando ficção e realidade, esta última sob a forma de ensaio psicanalítico, mas numa perspectiva sempre literária. Era preciso extrair da teoria psicanalítica algo que pudesse servir à ficção e, não o contrário, aplicar a psicanálise à literatura para, a partir daí, lhe dar um novo sentido, propondo, até mesmo, um novo modelo.
Existe um outro aspecto que deve ter influenciado na construção da narrativa, inconsciente no momento da escrita, cujo efeito percebo melhor agora com o livro já terminado, que é o fato de eu mesmo ser um leitor de ensaios. Quando estava escrevendo o livro, eu lia sobretudo ensaios sobre literatura e psicanálise, não ficção e também algumas biografias sobre psicanalistas, mais do que propriamente ficção. Se algum crítico for buscar a origem do ensaísmo que impregna a narrativa, não deve procurar tanto em Montaigne, mas nas obras fronteiriças do professor de literatura e psicanalista Pierre Bayard. Acho que a leitura desse gênero literário me influenciou mais do que eu seria capaz de admitir para a escrita desse livro. Na medida em que Freitas tinha tendência a fugir da realidade e a imaginar para si uma personalidade e condições de vida que não possuía, talvez eu tenha me refugiado na não ficção para me contrapor ao bovarismo dele.
A: O narrador- psicanalista narra seus casos-pacientes e para cada um deles ele próprio se envolve, ele mesmo como um personagem-caso. Não temos em comum a figura do psicanalista neutro que está ali como uma escuta do paciente e que não sabemos nada à seu respeito. Por que optou por um analista assim?
Tiago: Com a figura de um narrador que não fosse neutro, eu quis desidealizar a imagem de um analista todo-poderoso, um semideus, o pai da horda primitiva, para retomar o mito simbólico que Freud desenvolve em Totem e tabu. E, a fim de aproximá-lo não só de seus pacientes, mas de si mesmo, eu precisava que, apesar de todas as certezas que Freitas pudesse ter no início do romance, a incerteza do narrador fosse ganhando terreno e dominando a narrativa até a ruptura que vemos ao final da segunda parte, que vai preparar as bases para uma série de releituras que os personagens farão sobre o protagonista na terceira e última parte.
Há uma outra justificativa para a escolha de um narrador que não fosse neutro, que é o fato de o próprio analista estar em análise, ao repassar seus casos com o supervisor Tiago Franco, que está convencido de antemão da culpa de Freitas. Era necessário que víssemos os pacientes não apenas por eles mesmo, mas através do analista, para entender como os sentimentos e atitudes deles o afetam.
Um último ponto é que eu acreditava que um narrador não confiável atenderia melhor às necessidades da narrativa, que procura estabelecer um diálogo em contraponto, envolvendo o analista e seus pacientes, o analista e seu supervisor, e assim por diante. Um romance que busca revelar o que existe de mistificação, de farsa, até mesmo de delírio, na vida comum, pedia um narrador que não enganasse o leitor mais do que o necessário para a economia da narrativa. No meu caso, a transgressão está colocada em cena de imediato. Para W. G. Sebald, a narração onisciente, em terceira pessoa, feita por um personagem pretensamente neutro, é uma fraude que não se aplica mais.
A: A paranoia é descrita pelo narrador com um processo que seria semelhante à narração literária. Porque está amparada na recriação da realidade no caso por um delírio. Mas ela tenderia para o fracasso. Sendo próxima da literatura, esta seria também uma arte para o fracasso?
Tiago: A paranoia parte de uma premissa falsa, mas toda sua elaboração a partir desse ponto que vacila é irretocável, não admite erro. Lá onde era falha, ferida narcísica, deve advir o fracasso, poderíamos assim dizer. Tem dois aspectos que chamam a atenção na paranoia, que a aproximam da narrativa literária, que são os aspectos formais e os temas. Não só ela se constitui a partir de delírios sistematizados, e o paralelo aqui com os arcos narrativos é inevitável, mas os próprios temas (relação, ciúmes, perseguição, autorreferência) que a invadem são universais.
Não é por acaso que o mais literário dos psicanalistas, o francês Jacques Lacan, tomou a paranoia como base do seu ensino, da transmissão em psicanálise, fazendo do sintoma não algo puramente patológico, mas antes de tudo, dando-lhe uma dimensão simbólica, potencialmente criadora, como fez ao analisar a obra de James Joyce num dos seus seminários mais famosos. Sem querer resumir sua tese, Lacan sustenta que Joyce não enlouqueceu por causa de seu sinthoma, que permitiu ao escritor criar uma obra a partir da falta daquilo mesmo que o constituiu como escritor e sujeito: o grande vazio da origem.
De fato, nessa perspectiva, a literatura está fadada ao fracasso. Mas é precisamente com a narrativa desse fracasso, por sobre a grande dor da ausência, que criamos a própria vida. Não a vida tal qual ela foi, mas uma reinvenção. E isso talvez já seja bom o bastante.
A: Há uma relação especular entre os muitos personagens do seu livro. Como se funcionassem como espécies de duplos que é um dos temas pilares da ficção. A mãe do narrador e a tia Enganinha, há um forte teor simbiótico entre as duas. Fale um pouco delas e da força que deram à narrativa.
Tiago: Desde meu livro anterior Por que os loucos escrevemos livros tão bons, o tema do duplo capturou minha atenção. Como você sabe, o duplo não é só um tema da literatura, mas da própria psicanálise, desde a publicação de O estranho, de Freud. Em Onde os paranoicos fracassam, esse tema aparece de maneira indireta, mas podemos supor, sim, que existem outros duplos no livro, como Freitas e o supervisor, a colega Roberta Simas e a namorada Charlotte Bouche-Florin, assim como a mãe de Freitas e Enganinha.
No caso da mãe do narrador e de sua tia, há certamente uma simbiose entre as duas, como você bem notou, o que não fica tão evidente assim nos outros pares. E essa simbiose vai determinar os desdobramentos da narrativa anos depois. Era importante também, subjacente à ruína moral do narrador, a presença de duas figuras femininas, sendo que uma precisava ter domínio sobre a outra, que era psiquicamente frágil. Muitas da características do narrador, como a vergonha da origem, o narcisismo ferido, a tendência à mistificação, entre outras, vêm desses primeiros anos ao lado da mãe substituta, Enganinha.
Além disso, sua pergunta me faz pensar que talvez Enganinha e a irmã sejam um mesmo e único personagem, a despeito do que possam parecer numa primeira leitura. Certo crítico, cujo nome agora me escapa, disse que Macbeth e sua lady eram dois personagens decompostos a partir do mesmo caráter. Estou certo de que ele não hesitaria em dizer o mesmo de minhas personagens.
Por isso, acredito que essa relação especular não se resuma apenas aos personagens do romance. Um colega me perguntou se não havia o risco de o personagem Freitas ser assimilado à minha pessoa, já que também sou psicanalista. Eu não o desmenti, mas no íntimo, tenha a convicção que me pareço muito mais com um dos pacientes do que com o analista ou, ainda, com o supervisor, que leva o meu nome. Se fosse parafrasear Flaubert, eu diria que Elfriede sou eu.
A: Você tem outros projetos literários em andamento? Me conte um pouco deles.
Tiago: Tenho um romance inédito chamado Tão fútil e de tão mínima importância, que acabou de receber o 1o lugar no Prêmio Rio de Literatura 2016. Ele deve ser publicado em 2018.
À maneira de um romance de formação, a narrativa deste novo livro acompanha a vida de um menino bastardo desde a sua infância, passando pelas descobertas, abusos e fantasias sexuais que, se não ajudam a iluminar o homem que ele se tornou, irão revelar seu desejo mais obscuro e sincero. A história de F. é contada com aparente distanciamento, como se o narrador repetisse a atitude fria do pai em relação à criança que ele foi, o que será motivo de espanto quando aprendermos que é ele mesmo quem reconta sua vida. Embora tributária das perversões de F., a narrativa recai menos sobre os vícios do personagem e mais sobre a busca de uma imagem ideal de si mesmo – não naquela em que ele não se saberia reconhecer, mas numa imagem possível, ainda que do outro sexo. Neste relato de um aprendizado invulgar, a perversão se traveste em transcendência.
À parte isso, tenho o projeto de um livro sobre a negatividade da condição humana. Eu gostaria de fazer na ficção, ainda que não descarte o ensaio, o que poderia vir a ser a história de uma perversão, que guardasse um parentesco longínquo e incerto com a psicanálise, criando assim linhas de tensão entre a teoria psicanalítica e a ficção. Não tornando a perversão como um tema, mas, antes, como uma personagem da trama. Mas, por enquanto, isso é só a ideia para um romance ou, quem sabe, para um esboço de psicanálise.
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