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“Envelhecer”: uma crônica de Márcia Basto sobre aceitação do envelhecimento e etarismo

“Abomino a expressão ‘boa idade’.  O prazer ou descontentamento trazidos pela idade depende do foco de cada um. Resmungar ou rir das próprias fragilidades?”

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Por Márcia Basto*

Envelhecer é feito entardecer. Sol e irradiância do brilho excessivo recolhendo-se à coxia.

Na cena subsequente as luzes se apagam e a iluminação convida não a ver, mas adivinhar, sentir. Imaginamos um palco ocupado por seres mágicos e encantados: duendes, sílfides, fadas e todo um universo lunar onde estão fecundadas emoções ancestrais. Lá, a água jorra para lavar, renovar e mostrar segredos do tempo do antes. 

Para uns, o entardecer traz momentos tristes e nostálgicos. Despedida.

Já outros, o consideram romântico. Cenário propício a afagos, corpos colados e beijos roubados. Declarações do amor que se acredita durar ad infinitum. Há, ainda, aqueles que nem percebem a magia do entardecer. São os que regulam o tempo pelas obrigações e cumprimento do que foi planejado em cada dia. Até mesmo o lazer obedece a uma programação pré-estabelecida.

Vivemos na sociedade do cansaço O poder-fazer assume mais relevância do que o simplesmente viver “ao correr do dia”. Entregar-se ao aqui e agora – o único tempo existente.

Poucos dão importância ao “ócio criativo” de que fala Domenico de Masi. Desocupar a mente das tantas agendas que inventamos. Entregar-se ao nada. Pois é no momento da vacuidade, no entretempo, que, esvaziando-nos de nós mesmos, podemos ser o que, de fato, somos. Sem máscaras nem perfis sociais. Alcançando a essência da subjetividade.

Envelhecer é uma nova estação da alma. Nela não há, apenas, lembranças. Ou murmúrios do tempo que passou, anseio de sentir o apoio interior, emocional. Há todo um percurso ainda a concluir. Sem pressa, sem voltar-se para o que poderia ter sido, mas, sim, para o que foi e, ainda, poderá ser. A alma desvelada traz o sentimento de autoproteção, de acolhimento. Nossa autoimagem se configura com mais clareza. Abrimos fendas para entrar no inconsciente, no passado.  

Envelhecer não é, tampouco, transverter-se na juventude que já passou, performando uma caricatura, por vezes grotesca, daquilo que não mais nos habita. Levados pelo desejo de preservar intacta a juventude que se foi: cabelos azuis, rosas, roupas que mostram a realidade do tempo nos corpos que já não são o de antes. Seria revolta ou, quem sabe, recusa de entrar nesse novo tempo?

Não se trata, longe de mim tal pensamento, de coibir desejo e liberdade de ser, pensar e agir, em qualquer idade, como nos aprouver. Acredito que certas atitudes sejam, talvez, a recusa de abrir a porta e deixar a velhice entrar trazendo a beleza desse tempo. Por que a preferência de se tornar prisioneira de uma casa desabitada? 

A velhice deve ser convocada, não como uma intrusa, mas feito convidada especial que armazena sabedoria, histórias, risos descompromissados e serena tranquilidade.

Abomino a expressão “boa idade”.  O prazer ou descontentamento trazidos pela idade depende do foco de cada um. Resmungar ou rir das próprias fragilidades?

Envelhecer traz a liberdade de seguirmos novos caminhos, realizando projetos adiados. Não há o que temer. Não importa ter 7 ou 70 anos. Importa sim adquirir na vida, a sabedoria de uma boa-vida.

*Com 73 anos, a escritora  e advogada recifense Márcia Meira Basto é autora de nove livros, dentre eles o ensaio “Clarice, Clarear o leitor de si mesmo em Clarice Lispector” (Ed. Bagaço, 1995.), a novela “Marion” (1999) e os premiados “Desejos e Histórias” (1998) e “Amar elos Vermelhos” (2005), que venceram os Prêmios Literários da Cidade do Recife. “Amar elos Vermelhos” foi relançado recentemente pela Editora Labrador. Além disso, é Mestra em Filosofia, tendo pesquisado identidade e alteridade na obra de Clarice Lispector.

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