O romance regionalista é, sem dúvida, uma composição das mais difíceis. Sem precedentes na tradição europeia, os escritores que se propõem ao gênero têm que resolver sozinhos as lacunas entre o real e o imaginário utilizando as idiossincrasias de cada região. O ponto chave é a verossimilhança, mas, paradoxalmente, como o leitor pode crer que aquela realidade ficcional é o retrato fiel de uma região se nunca a conheceu? A resposta filtra os escritores hábeis.
O romance “Liturgia do fim” (Tordesilhas, 2016) de Marília Arnaud, responde a pergunta acima. A princípio, a trama regionalista se mostra camuflada ao leitor; a autora dá indícios de que a história se passa no Nordeste, mas em nenhum momento temos a prova cabal do ambiente. Marília emprega com domínio e habilidade um não-regionalismo regionalista que atravessa a verossimilhança de um povoado do interior nordestino chamado Perdição. Esta é a primeira pista da trama: o narrador-personagem está deixando o lugarejo de Perdição e chegando a uma cidade ainda sem nome.
Junto com a pista, uma qualidade da narrativa que perdura é a alternância entre o passado e presente. O narrador é adolescente e adulto enquanto deixa Perdição e conta da cidade em que se estabeleceria pelos próximos trinta e poucos anos de vida. A autora utiliza o vai e vem da narrativa para simular a característica da memória humana de conectar o presente com o passado e, paralelamente, deixa o sinal de que o evento que sangrou a fuga de Perdição foi um trauma que o tempo apenas arrefeceu, não o apagou. O eco do passado origina um vórtice de angústia no presente.
Nós, os leitores, percorremos a trilha de sangue deixada pelo conflito em Perdição. Somos o narrador, Inácio Boaventura, retornando para casa, após trinta e poucos anos, para encontrar o túmulo da mãe e encarar o passado com o rosto paterno de Joaquim Boaventura. A figura paterna é o deus da calamidade; a autora trabalha singularmente a religiosidade como o componente que pode justificar a violência do pai transformando-o no Deus do velho testamento.
“Não carecemos de Deus, Inácio, já temos nosso pai para nos condenar”. Explica a irmã do narrador. Irrepreensível por sua figura de criador, Joaquim abusou dos rompantes de fúria para condenar o futuro da família. Mas ele está morrendo. Não é um deus, portanto. Mas engana-se quem acha que a trama gira na redenção familiar. “Liturgia do fim” trata de falhas, carências, personagens orgulhosos, brutos, camuflados apenas pela linguagem empregada.
Mas se por um lado somos o touro fisgado pelo vermelho-sangue dos débitos familiares, por outro somos o apreciador do ambiente descrito pela autora. Com o domínio da Natureza que compõe o quadro nordestino, Marília tece com zelo vocabular e certo barroquismo a paisagem que observa e perdura ante o conflito.
Por fim, a autora constrói e explora personagens simples, cada qual com uma verdade fruto da experiência de realidade adquirida; ela explora a certa automação na luta pela sobrevivência ou pela manutenção de valores tradicionais no desenvolvimento da trama e então a permeia com o singelo primitivo. Notamos, assim, os personagens, de barro seco do sertão, adquirirem vida e credulidade. Por isso o leitor confia naquela realidade sem nunca ter pisado em Perdição. Livro mais do que recomendado.
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