O poder das palavras de Sándor Márai

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Vejo nos seus olhos que você não entende. Com o cérebro talvez eles entendessem, porque eles eram cultos. Mas com o coração e os gânglios eles também não entendiam. O coração e os gânglios deles estavam inquietos o tempo todo. Tinham medo de que os muitos cálculos, planos, arrumações não valessem nada, um dia alguma coisa acabaria… o quê, mesmo? A família? A fortuna?… (…)” página 292

Veja aquele homem. Espere, não olhe agora, vire-se para mim, vamos conversar. Eu não gostaria que ele olhasse para cá, que me visse, não gostaria que me cumprimentasse (…)” página 11

O romance De verdade (Az igazi, tradução do húngaro Paulo Schiller, 448 páginas, R$ 54,50) escrito por Sándor Márai, lançado recentemente pela Companhia das Letras, descreve como conflitos amorosos e de classe se combinam para revelar um amplo painel da burguesia decadente da Europa Central, após as duas grandes guerras.

A narrativa é constituída por monólogos, na voz de personagens que confidenciam os seus sentimentos. Ilonka, uma mulher divorciada, pertencente à burguesia, é a primeira personagem a aparecer, relatando a uma amiga, sua vida quando era casada. O amor incondicional que sentia por seu marido, seu empenho em mantê-lo ao seu lado ainda sabendo que estava com outra e inclusive, que era uma simples criada são os apontamentos que a mulher relembra. A inutilidade daquele seu esforço, ainda é somada a trágica morte do filho. Sua reconstrução pessoal após o divórcio finaliza sua narrativa, que ocorre numa confeitaria em Budapeste.

A segunda voz a entra em cena, é a de Peter, o ex-marido de Ilonka, que conta sua versão para a separação a um amigo em um café. Um homem acomodado, que vive numa busca constante de algo que nem sequer está certo a decifrar. A tristeza da morte do filho também o acompanha, e reconhece o preço pago pela paixão inconfessável por Judith, a empregada que servia na rica mansão de seus pais.

Após as narrativas de Ilonka e Peter, o romance dá um pulo de trinta anos, a própria Judith conta para seu namorado, em um hotel de Roma, como ela, de origem humilde, casou com um homem rico, mas que o casamento sucumbiu o ressentimento e a vingança.Por último, o confidente de Judith, está em Nova Iorque, revê o que escutou, ao mesmo tempo em quefaz uma crítica áspera da ditadura da sociedade de consumo, responsável pelo fim do sonho americano.

A edição reúne as duas primeiras partes, publicadas em 1941 na Hungria, e a terceira, escrita durante o exílio italiano e reunida à versão alemã de 1949. Como poeta, o autor colocou sua experiência de então numa prosa lírica, que podemos dizer até que filosófica. Aqui vemos a descrição do amor, da amizade, do sexo, da solidão, do desejo e da morte como poucos conseguem transmitir. Os pontos de vistas de seus personagens desentranham uma história de paixão, mentiras, traição e crueldade concebida por Márai, onde o interlocutor-leitor se sobressai, e revela, de forma crua, como a felicidade é um estado elusivo e inalcançável para suas criações.

Mais uma vez, um romance poderoso, a obra máxima deste húngaro que merece está na estante de qualquer apaixonado por literatura. Ótima leitura.

Cadorno Teles
WRITTEN BY

Cadorno Teles

Cearense de Amontada, um apaixonado pelo conhecimento, licenciado em Ciências Biológicas e em Física, Historiador de formação, idealizador da Biblioteca Canto do Piririguá. Membro do NALAP e do Conselho Editorial da Kawo Kabiyesile, mestre de RPG em vários sistemas, ler e assiste de tudo.

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