Já pensaram que alguns livros não deveriam ser traduzidos? Ou melhor, há obras que perdem a metade de seu valor literário ao serem traduzidas para outras línguas, imaginem o trabalho de traduzir Jorge Amado ou Machado de Assis para o mandarim ou mesmo para o inglês. Perde-se elementos literários com os quais o autor se faz reconhecido ou quando abusa dos trocadilhos ou dos jogos de palavras. Por isso, alguns tradutores são obrigados a usar notas de rodapé para esclarecer aos leitores os nuances da língua original. Recentemente recebi da Editora Rocco, o último trabalho de Julian Barnes, “Pulso” (Pulse – tradução de Christina Baum – 240 páginas) que se encaixa perfeitamente nas obras que são melhores na versão original, entretanto, o tradutor aqui opera brilhantemente entre a malícia alvejante que aporta o talento de Barnes e a inocente expectativa de encontrar cândidas transliterações na língua portuguesa.
Lançado originalmente em 2011, Pulso apresenta 14 contos, divididos em duas partes, e relatos que não tratam de temas mais abrangentes, mas de problemas sensíveis e cotidianos que ocorrem entre casais de classe média, grupos de amigos, divorciados e comerciantes. Na primeira, reúnem-se os relatos mais ágeis, escritos praticamente à base de diálogos, sempre cortantes e surpreendentes, onde se alternam uma série de relatos independentes com uma narrativa de diálogos, dividida em cinco partes, a de um grupo de amigos que moram em Londres debatendo sobre tudo, mas que acabam sempre, em grande desordem, quando tratam das relações domésticas.
Com o título, “Na casa de Phil e Joanna”, a série de diálogos nos dá a dimensão global do livro, que é recorrer ao pensamento a partir do cotidiano caminhando para o existencialismo. A prosa refinada do autor também comparece para compor o ambiente e o clima, por vezes desencantados, como na história de abertura, “O vento leste”: “Assim era a costa leste: meses a fio de tempo um pouco ruim e a maior parte do ano sem tempo nenhum. O que estava bom para ele: havia se mudado para não ter tempo nenhum na sua vida.” Barnes indaga com mordacidade e inteligência no mais profundo da natureza humana sem que o leitor de imediato se dê conta.
Exímio observador do fastio, das banalidades, do pedantismo e do amor em sua modernidade, Barnes traz, desvelando a história de um divorciado e uma mulher – e seu passado comunista – ligando-os, para desgraça de ambos, a um incerto presente. O autor exprime seu olhar afiado sobre acontecimentos, grandes ou pequenos, que resumem a existência humana.
Ainda aborda como uma tela de fundo a importância dos sentidos para nós seres humanos, e o equilíbrio destes como uma metáfora da sabedoria natural implícita à nossa espécie. Em especial, nos cinco últimos contos (O retratista, Cumplicidade, Harmonia, Carcassone e Pulso), onde encontraremos a mesma drama cotidiana com reflexões transcendentais. Aqui, abusa mais do humor, que salpicou ao longo dos demais contos, que, de alguma maneira, faz reconhecer Julian Barnes como um dos mestres europeus da Literatura contemporânea. Apesar do que explicitei sobre a tradução, algo que a Rocco já foi criticada, esmero o trabalho de tradução em Pulso, que consegue ser versátil para o estilo e estrutura narrativa de Barnes.
Os contos de Pulso – divertidos, ousados, inventivos, iconoclastas, originais – comprovam que Julian Barnes é hoje um escritor com perfeito domínio de seu ofício, capaz de compor um livro com histórias curtas que, sutilmente ligadas entre si, possui invejável unidade de temas e tratamentos. Confiram esse livro e comentem aqui no Ambrosia o que acharam.
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