Literatura

Resenha: Um calabouço de detalhes (Funes, o memorioso)

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Capa de FiccionesTrazemos aqui uma pequena resenha reflexiva a respeito de um dos mais interessantes contos de um dos meus escritores preferidos: Jorge Luís Borges. Funes, o memorioso ou a memória (em tradução portuguesa) foi publicado pela primeira vez em 1944 em um livro intitulado ficciones (ficções). Devo confessar que o mesmo sempre me pareceu perfeito para se trabalhar com algumas questões chaves que me debruço como historiador, talvez até mesmo além, como ente humano sujeito ao tempo. A obra do escritor argentino é um dos mais importantes exemplos do realismo fantástico, gênero que também foi construído por Júlio Cortazar e Gabriel Garcia Márquez.

Recordo-o (não tenho o direito de pronunciar esse verbo sagrado, apenas um homem na terra teve o direito e tal homem está morto) com uma obscura passiflórea na mão, vendo-a como ninguém jamais a vira, ainda que a contemplasse do crepúsculo do dia até o da noite, uma vida inteira. Recordo-o, o rosto taciturno e indianizado e singularmente remoto, por trás do cigarro. Recordo (creio) suas mãos delicadas de trançador. Recordo próximo dessas mãos um mate, com as armas da Banda Oriental, recordo na janela da casa uma esteira amarela, com uma vaga paisagem lacustre. Recordo claramente a sua voz; a voz pausada, ressentida e nasal de orillero antigo, sem os assobios italianos de agora.

O conto de Jorge Luís Borges nos transporta até uma pequena cidade Uruguaia onde reside um estranho personagem, Ireneo Funes, cuja memória é tão poderosa que sobrepõe todas as outras faculdades do mesmo. Prisioneiro de sua capacidade, o homem acaba por se tornar incapaz de racionar sobre o que vive, preso que está aos detalhes.

Como o narrador afirma no final do texto “pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair”, tal afirmação nos leva a diversas reflexões sobre a forma de viver de Funes. Fato que se agrava quando o mesmo foi um personagem que sofreu um processo de transformação, ou seja, sua condição somente se deu por causa de um acidente, fazendo com que ele possuísse ciência da forma mais “trivial” de memória (aquela utilizada por todos nós).

O tempo, para ele, era uma realidade que aparecia em uníssono. Sua vivência do passado era tão real quanto o presente e estava atada a sua forma olhar o mundo. Tudo o que ele enxergava era imediatamente guardado ao mesmo tempo em que era projetado, formando na sua mente um caleidoscópio de imagens memoriais. Algo que para nós deveria ser tão semelhante entre si, a ponto de não nos importarmos (portanto esquecermos), para ele era inteiramente novo, para o memorioso havia diferença entre o cão de perfil das três e quatorze e o cão de frente das três e quatro. Seu tempo era uma grande massa que continha todo o tempo do mundo inserido na mesma, viver era reviver lembranças e Funes gastava dias inteiros lembrando de outros dias por completo.

A verdade para Funes era a sua existência, tão convicto da inefabilidade da sua memória ele acreditava que vivenciara tudo com muito mais detalhes do que todos e que isso o fazia de certa forma melhor do que os outros (o que pode ser atestado quando o mesmo se refere a sua vida antiga). Sua verdade estava nos detalhes. Sua vida era se perder nos pormenores da percepção e se deleitar com o avanço da umidade e com a forma das nuvens em um dia passado. Portanto, para ele viver era tão somente lembrar (incluindo em lembrar o ato de criar novas lembranças). Seu aprofundamento era tanto a ponto de reprovar nossa semiótica como imprecisa e demasiadamente generalista, para Funes deveria haver um sistema capaz de dar um signo único para cada coisa, cada expressão, observada em cada momento preciso. Seus fatos eram limitados a uma memorização sem um real raciocínio, apenas o total e completo registro de tudo que acontecera ausente de distinções ou afastamentos. Na verdade é difícil até mesmo dizer que ele era capaz de formular fatos visto que os mesmos já estavam impressos de forma automática em sua psique.

Apesar de sua condição parecer ideal para que fosse um grande historiador do mundo, visto que era incapaz de esquecer, o mesmo nunca seria apto para produzir história por si próprio, pois a mesma está inegavelmente ligada ao presente. Toda história é uma história contemporânea e Funes estava irremediavelmente preso ao passado para isso. Vivia-o sem distancias portanto era incapaz de refletir e abstrair sobre o mesmo, não havia problematização no mundo do personagem e isso o incapacitava como historiador, e além disso, o incapacitava como ser pensante. É impossível refletir sem esquecer.

No fim Funes teria sido o ser com mais memórias do mundo, e ainda com 19 anos, havia vivido muito mais do que todos os homens, preso para sempre em seu calabouço de detalhes.

Havia aprendido sem esforço o inglês, o francês, o português, o latim. Suspeito, contudo, que não era muito capaz de pensar. Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair. No mundo abarrotado de Funes não havia senão detalhes, quase imediatos.
A receosa claridade da madrugada entrou pelo pátio de terra.
Então vi a face da voz que toda a noite havia falado. Ireneo tinha dezenove anos; havia nascido em 1868; pareceu-me tão monumental como o bronze, mais antigo que o Egito, anterior às profecias e às pirâmides.
Pensei que cada uma das minhas palavras (que cada um dos meus gestos) perduraria em sua implacável memória; entorpeceu-me o temor de multiplicar trejeitos inúteis.

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4 Comentários

  • O conto realmente é muito interessante e nos faz pensar acerca da história, pois também sou historiadora! Funes percebe que as coisas passaram por ele e não percebeu e agora só vive em função dessas lembranças. Outra parte que me chamou atenção no texto é quando o narrador acha Funes um ser “estranho”, um cara que sabia sempre a hora, mas depois ele pode perceber e se surpreender o quanto Funes era uma pessoa especial e muito complexa, até pela sua idade. Parabéns sua resenha ficou ótima!

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