Carolina Panta nasceu em Porto Alegre, RS, onde vive até hoje. Formou-se em Letras pela UFRGS e é professora de Língua Portuguesa e Literatura. É editora da revista literária La Loba e publicou três romances: “Dois Nós” (Metamorfose, 2019), “Olivetti Lettera 32” (Zouk, 2021) e “Falso Lago” (Zouk, 2023), sendo este último um retrato das enchentes em Porto Alegre e uma reflexão sobre desigualdades sociais e de gênero.
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“Quando o que é de dentro transborda, leva mato, galho, lama. Escorre abrindo sulco em terra dura, arrasta rocha de tonelada morro abaixo. A enxurrada interna derruba com força, dá caldo daqueles de sensação ruim no nariz. E a gente tenta ajeitar as roupas desarrumadas pelo corpo que já não cobrem mais nada. Uma cena tão ridícula quanto se afogar no raso do mar. Na água em que os velhos mijam, lugar em que as crianças pequenas ainda dão pé. A chuva de dentro quando vem bate na cara e leva o corpo ao chão. A gente deságua, desalma, desaba. Arrastados, mas sobreviventes ao alagamento, talvez possamos conhecer o significado daquilo que alguns chamam por força, outros por fé. E se os olhos transbordarem frente ao espelho, então nos sentiremos vivos. E raros.”
(Falso Lago, p.1)
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“E a coisa no lado de lá das ilhas complicava de verdade quando começava a chover na cabeceira do Jacuí. Questão de tempo até aquela água toda descer a Porto Alegre. Nas palavras do motorista, vi a professora desenhando um triângulo no quadro, que não era triângulo, era delta. Jacuí, Taquari, Caí, Sinos e Gravataí. Um para cada dedo, anotei na cola da prova. Na imagem da cartilha, era bonito esse emaranhado de rio cortando geografia. Mas meu livro de estudos sociais não tinha cor de árvore nem definição que chegasse pro cheiro de esgoto entrando pela janela do carro quando passamos pelo velho porto com seus navios fantasmas.”
(Falso Lago, p. 49)
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“A figura de Lúcia foi-se com o vento e só a lama escura pintava meu torso. Caí rosto colado ao solo e deitei com a boca aberta nas marolinhas. O Jacuí prestes a virar Guaíba e toda sua água se juntaram à minha saliva e era como se unidos fossem transbordar. Os engoli, pois tinha sede. O rio, que agora ficava do lado de dentro, subiu rápido seu nível atingindo ligeiro a ponta da régua que marca o limite das catástrofes. Saiu pelos poros, glândulas, orifícios corporais. Tudo era inundação.”
(Falso Lago, p. 142)
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