Rebecca Navarro Frassetto é escritora e poeta, formada em Letras, e atualmente vive em Mogi das Cruzes. É autora do romance juvenil “Nosso Amigo Gaivota”, que explora temas de preservação ambiental e empatia através de uma aventura pelo tempo e espaço. Trabalhou como co-editora dos jornais culturais Jornal da Praça e Café Literário e em 2015, após ter sido mãe, voltou à literatura lançando seu fanzine “O barulho do vento”.
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Antes de desembarcarem da nave, todos os tripulantes calçaram suas botas pró-gravidade que os prenderia ao chão. Aquele, sabiam, era o cuidado mais importante para não transformar a missão numa fracassada revoada de humanos-bexigas (sem) rumo ao espaço. Imagine a situação calamitosa se, depois de quase mil anos e diversas gerações, acontecesse isso de ir tudo pelos ares.
A emoção coletiva não estragou, contudo, os anos de organização para o momento mais esperado do milênio que zerava e iniciava a contagem do tempo bem naquele instante; afinal, mesmo a contagem dos anos seguintes seria diferente a partir dali, já que o tempo de um dia inteiro em Alana era suficiente para se devorar doze refeições… e outras doze no tempo da noite. A volta do planeta em torno de Nina, a anã gigante que os aquecia, bem como em seu próprio eixo, era dezessete vezes mais lenta, mas todos já estavam, inclusive, treinados para passar francos dezessete dias acordados e o equivalente em sonos tão longos quanto de fato achamos que são os nossos, insones terráqueos. Não era de se espantar que, mesmo passado tão pouco tempo após a decolagem que deixara a Terra para trás, seus corpos já apresentassem algumas mudanças em relação aos da primeira geração de cosmigrantes, em especial a ausência de pelos e cabelos, o que deixava suas cabeças com uma aparência maior. Mas até aquele momento, era só aparência. Levariam mais uns mil anos alanianos para se parecerem com o indivíduo de olhos imensos e fala empolgada que invadira a cabana de três irmãos curiosos naquela mesma manhã e que concluía dizendo:
— E wii! Como já devemti imaginar é isso mesmo: sou um humano do futuro! Vivo a exatamente oitenta e sete mil anos terráqueos depois da primeira expedição humana à Alana, o único planeta habitável longe da Terra, o que acontecerá em cento e sete anos dez meses e oito dias!
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Foi num encontro insólito no centro do planeta Terra que eles se uniram para girar a roda do núcleo. Estavam todos reunidos no umbigo do planeta, formando um imenso círculo em torno da esfera de rocha plutônica que emanava uma luz avermelhada no centro e azulava conforme suas ondas percorriam cada sedimento até clarearem, adquirindo o mais puro branco, em todo o seu contorno. Com as mãos dadas e formando um grande círculo, a luz dourada que envolvia os corpos daqueles seres mágicos aumentava aos poucos enquanto estes começavam a flutuar sobre a imensa rocha redonda, que assumia para si a aura de cada um deles.
Assim que as luzes de corpos e rocha se encontraram, todos os ruídos do planeta começaram a soar, resultando numa sinfonia de ondas quebrando na areia, trovões implacáveis denunciando a coragem do céu, o vento atravessando janelas mal fechadas, o lamento das baleias, o eco das conchas abandonadas, o canto preguiçoso dos pássaros no despertar de Galápagos, o grito desesperado das plantações de girassóis, o choro no primeiro sopro de vida de um bebê, a voz faminta da lava ao ser cuspida de seu vulcão, e a gota de chuva tilintando nas tigelas tibetanas, até que um imenso clarão se fez em todo o núcleo e a rocha deu um pequeno giro anti-horário. O clic não apenas voltou algumas catástrofes no tempo da natureza como também possibilitou que a rotação da roda do núcleo retomasse seu sentido, evento que foi observado pelos cientistas daquela época quando ela havia parado de girar. Ao rotacionarem o núcleo do planeta, os seres tornaram seguro o retorno dos jovens irmãos no exato momento em que deixaram a Terra rumo à Alana naquela manhã lá longe, e estes, ao regressarem, encontraram um rancho com todas as cores intactas, seus pais ocupados em suas tarefas e a vaca Gina pastando “bembuena” na linha do horizonte que, com toda nitidez, separava a água do céu.
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Papai sempre partia nas primeiras horas da manhã para buscar leite. Ele saía da cama sem calçar os sapatos, já que estes faziam muito barulho quando encontravam os tacos de madeira no chão. Chegava sonolento até a grande sala e acendia a luz fraquinha da arandela de latão presa na parede, só para ver despertar a sombra das cadeiras da sala de jantar. Começava a se vestir enquanto os reflexos molengas dos pés das cadeiras se espreguiçavam e, da forma mais lerda possível, voavam até o fogão para lhe aquecer o café. Era sempre o momento da inevitável canseira que mora entre o sono e o despertar. Papai bocejava e tomava seu café fumegante sem que ninguém o notasse, como se, a cada manhã, tudo flutuasse pela casa de três portas e nove janelas — todas verdes — em meio ao terracota das paredes externas. Janelas e portas que pareciam uma extensão das inúmeras parreiras que rodeavam a casa toda. Lazio partia então atrás do leite sob o aceno moroso de despedida das sombras derretidas no vão da porta da cozinha, enquanto estas, tão logo começava o clarear da manhã, voltavam fortalecidas e estacionavam ao pé de suas cadeiras. Discretamente inquietas, mudavam de lugar tal como todos os demais corpos e objetos faziam ao longo do dia, até que a noite surgisse e as entregasse ao infalível esquema da escuridão.
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