Camila Veloso é escritora e empreendedora paulista, fundadora da Aldeia Literária, onde utiliza a metodologia Cohort Learning Method para promover a criação literária. Formada em Produção Editorial pela Universidade Federal de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, passou por áreas de comunicação e marketing em agências, startups e multinacionais. É autora dos livros “Traumas de uma Grande Gostosa”, “Cartas ao Sol” e “Encontrei um Pote com Tempo Dentro” e “O Diário de Amélia”.
Trechos de “O Diário de Amélia”, por Camila Veloso:
Respondi um story do Lucca enquanto voltava para casa e não sei onde estava com a cabeça. Na verdade, eu sei, eu queria me livrar das perguntas do meu pai sobre o conteúdo da aula, sobre manter minha mente blindada contra as armadilhas do inimigo e da pergunta…
— Estão te ensinando algo que te tiraria da comunidade?
— Não, pai.
— Então me fala o que você aprendeu hoje.
— Química orgânica e história.
— E o que é química orgânica? Não vai virar mente fraca, hein…
Ele vira a cabeça para mim a cada cinco segundos, dizendo que preciso ser forte, e só tenho vontade de dizer: “nunca gostei de ser considerada fraca, pai, Então, fica tranquilo, talvez a comunidade seja a única coisa que possa me afastar da comunidade”, mas não posso dizer isso, ele ficaria bravo, e então finjo que escrevo algo importante no celular e respondo o story do Lucca e de mais algumas pessoas. Chegamos em casa.
Abro a porta metálica da cozinha e pego um copo na prateleira branca. Vou até o filtro e encho o copo, indo em direção às escadas depois da cozinha. A cada passo em direção ao meu quarto aumento o volume da música, porque, meu Deus, O QUE ACABEI DE FAZER?
Deito de barriga para cima na cama e canto a música mentalmente, como se isso pudesse fazer a vergonha e o sentimento de que sou patética irem embora.
Não faz.
Meu estômago embrulha, mas, antes que eu tenha coragem de apagar o que escrevi para ele,
meu celular vibra.
Ele respondeu à minha mensagem, e agora não sei mais existir.
***
Estamos conversando há três dias, e para conversar com ele é preciso abrir o caderno do cursinho, porque ele sempre puxa assunto falando sobre o conteúdo das aulas. Ana Julia abre o papo de hoje com um áudio.
— Todo mundo já fez os exercícios de amanhã, certo?
Michele está gravando um áudio…
— Consegui metade. Os últimos exercícios foram um porre.
Nathan está gravando um áudio…
— Pô, eu nem sabia disso aí.
Eles continuam conversando, e espero Lucca se manifestar com um grande “EU SABIA” na garganta. E agora você está pensando: Poxa, ela não está conversando diretamente com ele, pois é…
Ele respondeu o que mandei nos stories dele aquele dia, o assunto morreu, mas ele me colocou em um grupo secreto do cursinho.
Um grupo de pessoas legais, uma panelinha, e eu tô muito feliz por ter um grupo de amigos tão… diferente. Na escola, eu só tinha amigas meninas, porque isso era esperado de mim.
— Não dá pra confiar nesses meninos — diziam minha mãe e o olhar sisudo do meu pai.
Ninguém lá em casa esperava ou mentalmente deixava eu me aproximar de um garoto, mas agora, no cursinho, era diferente.
Eles não conheciam os professores, os alunos, tudo aqui era novo, longe de casa, e isso me dá mais liberdade para falar o que eu penso, todas as coisas que escrevo aqui e guardo fundo, porque essa casa não tem espaço para mim. O nome do nosso grupo no WhatsApp é Insolentes; a ideia nasceu na aula de filosofia, alguns dias atrás, pois:
— Só insolentes ousam ficar — disse o professor Bruno, depois que metade da turma decidiu que as aulas dele não eram boas o suficiente e que preferiam estudar pela internet.
Nós éramos seis, três meninos e três meninas; eu, Ana Júlia, Michele, Nathan, Juliano e, claro, com todas as honras, Lucca.
Nos sentamos na frente, passamos resoluções de exercícios pelo Whats, nos incentivamos a participar das aulas e conversamos muito nos intervalos. Às vezes, no meio da noite, eu pensava em mandar mensagem para o Lucca no privado, porque eu podia pegar o número dele no grupo e mandar.
Mas sei lá…
E se ele não me respondesse?
E se achasse que eu estava gostando dele?
Na verdade eu ESTOU SIM gostando dele, mas eu tenho medo de ele me achar patética por gostar dele, entende? Será que eu mereço gostar dele?
Ele fica on-line toda a noite, e fico esperando o dia em que vou acordar e ter mais coragem para me expressar.
***
Combino com meus pais uma nova rotina, já que eles têm chegado tarde para me buscar no cursinho. Agora, posso voltar de ônibus três vezes por semana, e só preciso avisar por mensagem ou em casa antes em quais dias vou voltar sozinha. Por isso, nesta sexta-feira, somos só eu e Michele no ponto de ônibus.
Tento puxar assunto enquanto o ônibus não chega.
— O Lucca está bem, Mi?
— Acho que sim, amiga, por quê?
— Sei lá, ele está meio… quieto esta semana.
— Não notei, amiga. Mas vou ver ele mais tarde hoje, posso perguntar se está tudo bem.
— Ah, os Insolentes vão sair hoje? Não vi no grupo, deixa eu abrir…
— Não, amiga, não é nada dos Insolentes, não. Eu tô ajudando-o a se vestir melhor, porque… Ah, deixa pra lá.
— Fala. Não conto pra ninguém.
— Promete? Tô confiando, hein… Ele terminou com a namorada há alguns meses, vários meses, mas ainda tem muitas peças que ela deu pra ele no guarda-roupa; então, tô ajudando-o.
— Ah, entendi — digo, com um sorriso sem graça. — Parece legal, um glow up.
— Total glow up, coitado, ele tá necessitado. — Michele começa a separar os cabelos para fazer uma trança longa. — Odeio como gente rica não sabe se vestir. Que desperdício.
— Ele é rico?
— Amiga, ele é um Fissa.
— Um o quê?
— Fissa… Da família Fissa… Dona de metade das indústrias deste nosso interior paulista?
— Ah… — respondo como se soubesse de quem ela está falando, mas na verdade não sei muito bem. O.K., eu já tinha ouvido falar do Roberto Fissa, é um nome que aparece sempre no jornal da cidade, mas não sabia que ele era parente do Lucca. Michele continua falando.
— Pois, minha filha, a casa deles é uma mansão! O quarto do Lucca tem lustre e tudo, eu poderia morar com a minha família ali, no closet, e eles nem iriam notar.
— Você conhece o quarto dele? — De tudo o que Michele falou essa é a única coisa que consigo escutar e de tudo o que ela me conta em seguida só consigo sentir o soco do primeiro “sim”.
O ônibus chega, subimos, e sigo fazendo perguntas enquanto meu coração afunda na tristeza, porque talvez Michele já tenha beijado o Lucca. Ela suspira.
— Ai, Amélia, posso te contar tudo? É algo que não falei nem pra Ana ainda…
Meu coração acelera. Eles já estavam namorando?
Não, por favor, não, não quero ver minha melhor amiga ficando com o meu crush. Deus, por que isso tem que acontecer desde a quinta série?
Michele se vira para mim no ônibus.
— Ele me pediu pra fingir ser namorada dele em uma festa no fim do mês. Um evento grande da família Fissa. A ex dele vai estar lá, e ele ainda não superou e tá solteiro… um rolo, sabe. Eu não ia aceitar, mas ele aceitou pagar as minhas inscrições nos vestibulares americanos, e eu tenho esse sonho de estudar fora, então…
— Entendi…
— Não me julga, por favor.
— Não julgo, não — digo, olhando para o chão, os olhos abertos demais. — Mas como ele te pediu? Tipo, vocês acabaram de se conhecer… Faz uns… três meses?
— Ah, essa parte também foi loucura, porque parece que o irmão mais novo do Lucca já seguia o meu perfil gamer e daí… já me achava bonita. Então, além de ser uma gostosa, ele disse que pode ser uma afronta para a família da ex. Afinal de contas, eu sou uma Macari. As oficinas dos meus pais são concorrentes das oficinas dos pais da Estela.
Macari, Estela, Fissa.
Michele segue repetindo nomes e sobrenomes que não conheço, e me sinto perdida.
Eu não sabia de tanta coisa…
Ela segue falando da ex de Lucca, e meu estômago embrulha, já que ela estava vivendo a droga de um conto de fadas parecido com Romeu e Julieta, porém sem morte e tragédia, só com a parte boa de fingir ser a namorada dele.
EU queria ser a namorada dele, mas meu sobrenome não seria uma afronta para ninguém. Sou Silva Santos, família de classe média, sem oficinas ou empresas de qualquer porte, só uma família trabalhadora, conservadora, por fora das brigas de família que acontecem no interior de São Paulo.
Os avós da Michele eram gregos, eu sabia, por parte de pai, e eles tinham várias oficinas na cidade. Ricos? Sim, como quase todo mundo naquele cursinho.
Acho que eu sou a mais pobre, já que meus pais são apenas funcionários da prefeitura, e, por mais nobre que essa profissão seja, não se ganha muito, não o suficiente para termos nomes de prestígio.
Meu ponto chega, eu desço antes dela e, antes de ir embora, digo…
— Estou feliz por você. Depois me conta tudo, O.K.? Ela diz “O.K.”, e me sinto mal pela mentira que acabei de contar.
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