As músicas que me trouxeram até 2023

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Vai fazer três meses que a extrema direita nacional começou a ser empurrada de volta para o esgoto da história, depois de constranger o país durante 4 anos. Tirando a Faria Lima e outros bilionários que vivem às custas do trabalho alheio, nesse período, os brasileiros tiveram que se equilibrar entre a inflação nos preços e a recessão na saúde mental para manter a lucidez. A eleição presidencial de 2022 demorou pra chegar, e depois que começou, durou o ano todo. Mas tiranos menores, parasitas do mercado financeiro e zumbis viciados em fakenews não vão derrotar nossa vitalidade. Fizemos a travessia e aqui estamos em 2023. O processo é lento e como nada do que é humano ocorre no silêncio, vou deixar registradas aqui algumas brisas que me acompanharam durante esses tempos atravessados.

Cartaz de lançamento da série “BEAT DIÁSPORA” produzida pela Kondzilla e lançada no Youtube

Primeira visão: “BEAT DIÁSPORA”. Uma série documental, produzida pelo Kondzilla e exibida no Youtube, que tem o ouvido virado para a música urbana nascida da diáspora africana. A série vai em busca dos gêneros musicais criados nas ruas das grandes cidades pan-americanas – São Paulo, Recife, Salvador, San Juan, Kingston – até chegar em Lagos, na Nigéria.  A brisa aí é a riqueza material e imaterial que o funk, o brega funk, o reggaeton, o dancehall, a Bahia eletrônica e o afrobeat são capazes de gerar. Com curadoria certeira, a série valoriza essas musicalidades para criar uma radiografia da paisagem sonora urbana da diáspora, onde vemos a imagem de um pop afro-latinizado, que virou o jogo, tomou a porra-toda e está agora desenhando as novas alternativas do pop global. 

O rap, que, por sua vez, não aparece diretamente na série, protagoniza o documentário “RACIONAIS MC’S: DAS RUAS DE SÃO PAULO PARA O MUNDO”, dirigido por Juliana Vicente e disponível no Netflix. Depois do DVD do show “Mil Trutas e Mil Tretas” de 2006, estava faltando mesmo um produto audiovisual de fôlego e oficial sobre a trajetória de mais de 30 anos dos Racionais. O documentário supre essa demanda ao narrar com competência a história do maior grupo de rap de SP e um dos maiores nomes da música popular brasileira das últimas décadas. 

O filme “Das ruas de São Paulo para o mundo” só confirma o que venho propondo desde 2014, quando comecei a pesquisar o trabalho dos Racionais: é necessário ir além do imaginário congelado dos anos 1990, que limita o rap à crônica sobre o gueto. Só assim vai ser possível compreender a abrangência do fenômeno musical representado pelo grupo.

Minha brisa é: os discos dos Racionais manifestam a impressionante habilidade do rap de codificar uma criação poética e sonora de imenso potencial crítico e com extraordinária capacidade de comunicação. A prova disso é que o discurso do grupo começa a disputar os espaços institucionais universitários controlados pela classe média eurocêntrica.

Ice Blue. Mano Brown e KL Jay participam de aula de encerramento de curso na UNICAMP

O curso “Antropologia IV: Racionais MC’s no Pensamento Social Brasileiro” ministrado pela professora Jaqueline Santos, é um exemplo disso, pois transformou o rap dos Racionais literalmente em aula no departamento de Antropologia da UNICAMP, em SP. Muito distante de Platões, Deleuzes e Foucaults, o curso é baseado no rap e teve ainda a moral de receber o grupo (com exceção de Edi Rock) no auditório da universidade para uma aula de encerramento aberta à comunidade. Vale conferir tanto o doc quanto a aula. 

Pra quem quiser saber mais sobre Racionais, está disponível no Spotfy no perfil “Na Brisa do Som” o áudio-documentário “A FESTA E A LUTA”.

Agora, a segunda visão: em termos de álbum de música mesmo, aquele clássico, como não podia deixar de ser, ouvi  com atenção o novo disco do Planet Hemp. Como dizem por aí, é improvável eles lançarem um disco ruim. “JARDINEIROS” é rap, rock and roll, psicodelia, hardcore e ragga, como sempre, naquele clima Hip-Hop-Rio style de Marcelo D2 e Bernardo BNegão.

O Planet chega mais uma vez de assalto na cena para fazer música brasileira depois de absorver o melhor da cultura de rua internacionalizada, querendo tudo como quem não quer nada.  Com a formação baixo, guitarra e bateria e muitas programaciones más, a ex-quadrilha da fumaça está de volta na praça e segue viva no game, rimando sobre a descriminalização da erva, o ridículo dos “patriotas” bolsonaristas e sua própria trajetória como banda, no o primeiro disco de inéditas depois de 22 anos. 

Alguns integrantes do Planet Hemp ao lado de Criolo (primeiro à esquerda) na gravação do clipe de “Distopia”

Outro álbum que ouço direto aqui é “APOCALIPTO”, primeiro disco do duo rasta-punk Disstantes, formato por Marco Homobono e Gilber T,  figuras importantes da cena de música alternativa do Rio de Janeiro . O primeiro é compositor e cantor da banda Djangos e o segundo é guitarrista do Seletores de Frequência e tem também seu projeto solo. Como define Homobono, o Disstantes é um “rap underground experimental feito por dois coroas”. Eu curto e, sinceramente, escuto ali os beats mais pesados dos últimos tempos do Rap RJ. No Disstantes tem funk, ragga e miami bass nas bases, e crônica da barbárie do Rio nas letras. É raiva contra o oba-oba.  Só ouve!

Marco Homobono e Gilber T formam o DISSTANTES e lançaram o álbum de rap experimental “APOCALIPTO”

Além de “APOCALIPTO” do Disstantes, acho que o disco que mais ouvi nos últimos tempos foi “REGIONAVE”, segundo disco do Familia Gangsters, banda de dub, ska e rock de São Paulo. A banda parece já ter acabado, mas eu só descobri o som deles agora, talvez por conta do meu interesse recente em torno da música jamaicana e de suas adaptações ao contexto brasileiro. O Familia Gangsters é uma dessas experiências, tentando fundir o dub com música folclórica brasileira, especialmente a oriunda dos estados do nordeste do Brasil. Essa proposta faz de “REGIONAVE” um bom disco jovem de dub brasileiro. Com destaque para o baixista e cantor Pedro Lobo (hoje baixista da banda Braza), que costura linhas de baixo na mesma medida das criativas melodias que canta enquanto faz uma música urbana brasileira contemporânea e pop.

Terceira e última visão: o reposicionamento de carreira que Rodrigo Suricato, compositor, guitarrista e cantor do Barão Vermelho, vem empreendendo em sua carreira solo. Acompanho Suricato desde que o vi pela primeira vez ao vivo num show despretensioso lá em 2012, onde ele já demonstrou de bobeira que era um dos maiores guitarristas do Brasil no universo do pop rock, blues-rock e folk-rock. Acontece que o tempo passou e ele percebeu que o rock envelheceu mal e tornou-se um tiozão hetero, quase sempre careta, quando não abertamente reacionário. 

Rodrigo, de óculos, com a nova formação da banda SURICATO, gravando para o EP “SURICATO SESSIONS”

Atento, Rodrigo parece ter traçado uma estratégia para se reinventar e escapar do estigma. Para isso, reconstitui seu projeto solo, Suricato, com a ajuda de três mulheres talentosas: Carol Mathias, no teclado e voz, Martha V, no synth, voz, violão e guitarra e Marfa, no baixo (Diogo Gameiro na bateria completa a formação). Com elas, Rodrigo vem buscando atualizar os arranjos de suas composições, desconstruindo-se para genuinamente dialogar com o contemporâneo da música pop. Para mim, ficou claro que a presença dessas artistas pode ampliar a força estética de sua música, deslocando-a de sua masculinidade totalizante e abrindo novas possibilidades para o seu processo criativo. A mais recente etapa dessa guinada é ainda mais ousada: o lançamento de um disco novo, ““Marshmallow Flor de Sal”, que, tendo um mascote de pelúcia real como ícone, reposiciona Suricato como um artista interessado num pop-rock colorido e dançante guiado pela guitarra. 

E pra finalizar, como o céu está avermelhado, vamos com beabá da chapa quente: o primeiro disco do Rage Against the Machine completou 30 anos de história em 2022. Desculpa aí, mas, para mim, ao lado do Springsteen, o RATM é a melhor coisa que os EUA mandaram para cima de nós nas últimas décadas.

A alquimia musical de rap, funk e punk rock que a banda criou foi tão pioneira na música popular que alcançou sucesso fulminante na indústria e teve que atravessar as ambiguidades da espetacularização midiática. Fui doutrinado pela banda logo no primeiro minuto da primeira vez que ouvi “BULLS ON PARADE”, em formato de clipe na MTV, lá em 1993, numa manhã de fevereiro. 

Aquela brisa ali de cozinhar Erik B & Rakim, Cypress Hill, Devo, MC5, com o zapatismo do EZLN, a militância política dos native-americans e a luta pela libertação do pantera negra Mumia Abu-Jamal soprou pesada no ouvido. Na linha de frente, veio a revolucionária guitarra do senhor Tom Morello, de mãe estadunidense e pai queniano, e a oralidade enfurecidamente no beat do senhor Zack de la Rocha.  No todo, ouvi um grito de guerra meio negro, meio mexica entre o rap e o hardcore, com um flow posicionado à esquerda do partido democrata dos EUA.

Monge budista em chamas na foto que está na capa do primeiro álbum do RATM. (AP Photo/Malcolm Browne)

  Então é isso aí, meus amigos e minhas amigas, termino por aqui. O que era pra ser curto, acabou ficou longo. Mas a sanidade é uma conquista e é bom conversar com o alter ego de vez em quando. Só recapitula aí: Beat Diáspora, Racionais, Família Gangster, Disstantes, Planet Hemp, Rodrigo Suricato e Rage Against The Machine. Ainda tem o Letieres Leite que, antes de partir, lançou disco homenageando Moacir Santos, tem a Marina Sena, a Marisa Monte e a Ludmilla amassando geral. Tem também tentativa de golpe da direita e olha que 2023 está só começando. Vambora que tem muita coisa pra fazer pra gente varrer o facho de volta para o esgoto de onde eles nunca deveriam ter saído. 

Gabriel Gutierrez
WRITTEN BY

Gabriel Gutierrez

Pesquisador e jornalista interessado na música pop produzida nas Américas.

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One thought on “As músicas que me trouxeram até 2023

  1. Como sempre, certeiro e indispensável! Valeu Gutt! Tô na brisa aqui!