Não há como negar: Beyoncé se tornou uma das maiores artistas Pop do planeta. E seu novo álbum, o aguardado, badalado e um tantinho polêmico, Lemonade, veio para coroar essa percepção que ela soube, com muita maestria, construir para si.
Sua carreira é resultado de um planejamento que começou lá na infância, como vimos em seu (excessivamente) solene documentário “Life is But a Dream“, que lançou em conjunto com um show de turnê. Cada passo seu parece ser meticulosamente pensado, numa estratégia de alcance que vem ultrapassando a pretensão musical, para ápices sócio-culturais. O impacto causado pelo lançamento de um vídeo clipe da música “Formation“, em fevereiro, já vislumbrava o que o novo trabalho ambicionava. Logo depois veio a participação no HalfTime do SuperBowl 2016, quando praticamente roubou a cena – junto com um inveterado Bruno Mars – da atração principal do dia, a banda Coldplay, onde causou comoção (e controvérsia) numa performance colérica de seu novo single, trajando, junto com seu corpo de baile, uniformes que remetiam diretamente às Panteras Negras, movimento anti-racista surgido na década de 1960 nos Estados Unidos, originalmente conhecido por “Black Panther Party”, e que tinha como objetivo proteger os cidadãos negros da violência da polícia em Oakland, na Califórnia.
Nem preciso dizer que sua representatividade ali, alcançava reverberações até políticas, com o ex-prefeito de New York, Rudolph W. Giuliani a criticando publicamente. Meses depois chega (primeiramente pelo Tidal a la Jay-Z, só depois, por comercializações físicas), um álbum que, em poucos dias foi tomado por resenhas elogiosas de publicações de respeito, e integrando as primeiras listas dos melhores trabalhos musicais de 2016. Tanto entusiasmo faz muito sentido em qualquer ouvida descompromissada.
Lemonade é um puta disco! Lançado em conjunto com um vídeo conceitual com quase uma hora de duração (exibido pela HBO), o trabalho reflete uma necessidade passional e artística da cantora de representar seus anseios pessoais (ela parece se divertir com o burburinho em cima de uma possível traição do marido em letras suspeitas, apesar de críveis) e posturas discursivas a cerca do empoderamento da mulher negra, ainda mais num meio tão segregacionista como o norte americano.
Nada disso faria sentido se esse discurso se impusesse sobre a música, mas Beyoncé é um misto de esperteza e talento, ou seja, musicalmente, seu trabalho é muito coeso, rico e consistente.
A ótima “Pray You Catch Me” abre os trabalhos num registro confessional em que pesa sua voz por sonoridades indies (com interessante arranjo de James Blake) e segue com a também gabaritadamente alternativa, “Hold Up” (que tem nomes Ezra Koening, do Vampire Weekend, na autoria), que é uma delícia de música.
A “menos Beyoncé” do repertório (e de sonoridade estranhamente assertiva e rocker) fica na conta de Jack White, num “feat” nem tão inusitado assim assim, já que o rock blues dele é perfeitamente nivelado com as propriedades vocais dela. Detalhe curioso é o sample de “When the leaves breaks“, do Led Zeppelin para esfregar no nossos ouvidos o quanto essa menina não está para brincadeira.
“Sorry” tem chamado mais atenção pela “Becky do cabelo bom” (alimentando o marketing ressentido do álbum?), mas, mantendo o estigma de bons refrões de música com esse título, pega fácil, fácil… “6 Inch” é o psicodélico encontro de Beyoncé com Weeknd, e isso não resulta em clichê, acredite. Uma surpresa se apresenta – principalmente quando se ouve o CD pela primeira vez – quando os acordes country de “Daddy Lessons” se inicia, com uma letra complexa sobre seu próprio pai, refletindo a memória afetiva e ressentida de sua natureza texana. O resultado é delicioso.
“Love Drought” é talvez a menos destacada do conjunto de músicas. Pode ser por causa da trégua que a letra dá à intensidade do início. Mas logo é retomada com a veracidade imposta em “Sandcastles“, onde a cantora se derrama na interpretação, deixando sobressair até uma aparente falha vocal como que para enaltecer a emoção a ela atrelada. Uma balada banhada com recursos dramáticos e muita dignidade. Dá vontade de ouvir ao vivo.
James Blake volta aqui (agora cantando) para complementar a melancolia de “Forward“. Daí chega a melhor faixa do disco, do ano e quiçá, da carreira dela: a maravilhosa “Freedom“. De forte arranjo soul e pitadas embevecidas de funk, a música é um hino à igualdade racial como uma potente canção de protesto. Por isso faz muito sentido a participação veemente de Kendrick Lamar. Recomendo assistirem o clipe da música, quando a cantora começa a música a capela e o refrão entra tão forte que chega a arrepiar. Ela acertou em cheio. “All Night” e seus grooves de guitarra, já vão apontando para o fim dessa viagem musical, com uma melodia catártica e letra mais moderada. É a preferida da própria, nesse trabalho. E eis que o fim chega com o Pop dançante (e pensante) de “Formation“, que parece reunir todos os matizes do álbum em si e ainda ser um hit dos mais sedutores, classificação que poderia facilmente ser atrelada á própria Beyoncé.
Lemonade é um disco testamento, que sabe muito bem ser contemporâneo ao seu tempo e suas complexidades como cultura social, por isso, é um valioso instrumento pop de afirmação. Sim, Beyoncé já tem a estatura de sua relevância.
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