Eu não sei se vou conseguir transmitir nesse artigo tudo o que eu tenho para dizer, afinal Sandman é uma obra imensa, são cerca de 2.000 páginas, mais especiais, o que torna a extensão dos temas abordados demasiadamente vasta para um artigo como esse. Portanto, escolhi que vou me deter em um tema central, sobre o que eu acredito que a série fale mais alto, mesmo que alguns detalhes da mesma sejam gritantes. De forma alguma tenho a pretensão de que esta pequena reflexão se torne a verdade sobre a série, pois tais coisas não existem, a única verdade sobre Sandman é que ela é uma obra bastante subjetiva.
Uma vez perguntaram a Neil Gaiman como ele resumiria Sandman, e eis que ele respondeu: “O rei dos sonhos aprende que deve mudar ou morrer e faz a sua escolha”. É um resumo bastante simples mais traz muito em seu enunciado. A série que se inicia com o encarceramento de Morpheus, tenta mostrar o quanto esse perpétuo mudou ao sair da casa de Alex Burgess. A série revolve a partir da questão da identidade e sobre o que é ser verdadeiro consigo mesmo.
Outra marca da série, é justamente sua construção como meta-linguagem (quase como monomito segundo Joseph Campbell), ou seja ser uma história sobre todas as histórias, na medida que o personagem principal é Sonho. Gaiman afirma que estava aterrorizado pela idéia de escrever uma série mensal e que o conceito de Sandman (uma máquina de histórias mais velha que o próprio tempo segundo ele) o permitia contar qualquer coisa que ele quisesse, do terror à ficção científica. Portanto somos confrontados o tempo todo por referências literárias das mais diversas, até mesmo de belos trabalhos imaginativos do autor, como poemas apenas sonhados por famosos escritores.
Hy Bender, autor do “The Sandman Companion” faz um excelente trabalho ao sintetizar a obra:
“Sandman é sobre um ser que é a personificação dos sonhos e rege o lugar onde passamos um terço de nossas vidas. A série ilustra como este ente “divino” começa a questionar suas ações no passado, as conseqüências desse seu questionamento; e os personagens memoráveis que ele encontra ao longo do caminho.
Sandman é também sobre espiar a superfície por trás das coisas, e reconhecer a importância dos sonhos, mitos e as trancendências em nossas vidas.
E por fim, Sandman é sobre histórias – de onde elas vêm e como elas nos moldam.”
Um exercício interessante é tentar reler a série cronologicamente, ou seja, em vez de seguir a numeração usual, ler as histórias em ordem de período. Se iniciando no Conto de Nada (Sandman 9, Histórias na Areia) e terminando em Exiles (Exilados) ou Sunday Morning (Domingo de manhã) (Sandman 74 e 73). É bastante interessante a evolução que nos é apresentada. Na primeira história (se desconsideramos o conto de sonho em Noites sem Fim, quando a terra nem havia sido formada), estamos diante de Kai’ckul, um rude e mesquinho lorde dos Sonhos, capaz de sentenciar alguém ao inferno por dez mil anos, apenas por que seu amor lhe foi negado.
Em a Canção de Orpheus (Sandman Especial) vemos ele ignorar as súplicas de seu filho e abandona-lo friamente a própria sorte. Até finalmente encontrarmos o Morpheus após o aprisionamento, que aos poucos começa a amadurecer, mas que ainda apresenta diversas características de um típico adolescente, como quando é deixado por Thessaly, e opta por se trancar em seu castelo, criando uma nuvem negra de chuva durante meses a fio. Ainda sim, aos poucos percebemos que de alguma forma ele mudou. Ele salva Callíope, perdoa seu filho, busca o Pródigo, e parece pela primeira vez realmente ouvi-lo. Este mesmo Sonho finalmente parece entender os motivos por detrás do afastamento de seu irmão. Começa a enxergar o mundo além de si mesmo e aos seres humanos além de “coisas que sonham”. Mas ainda era difícil mudar. Ele ainda era incapaz de se enxergar sob uma nova ótica. Lucien, ou Adão, o livreiro do sonhar, um dos poucos próximos de Morpheus compreende de forma esplêndida o que ocorreu com seu amo: “No final, talvez, deve se mudar ou morrer. E acredito que haviam limites sobre o quanto ele se deixaria mudar”.
Quando Daniel assume o manto como Sonho, obviamente temos a mesma sensação de Matthew (“você não é ele, não importa o que você diga”), mas aos poucos vamos percebendo que aquela “nova proposta” de Sonho, que retira todas as vinganças de Morphues (libertando Richard Madoc, Alex Burgess, Lyta Hall), é efetivamente alguém melhor, capaz de tocar o próximo, capaz de perdão. Em sua clareza, vemos que o sacrifício de Morpheus realmente resultou em um caminho melhor para todos, inclusive para ele, na paz que encontrou.
Quando vamos rever Morpheus pela última vez, no sonho de seu amigo Hob Gadling (em Sandman 73), ele está feliz e sorrindo em uma praia distante com o seu irmão Destruição. A cena é notavelmente intrigante, pois é com o seu encontro com o Pródigo que ele acaba (talvez até mesmo inconscientemente) optando pelo suicídio. Ao sair da casa de seu jovem irmão, onde ele aprende que “não existe tal coisa como moeda de um lado só, que existem dois lados em todo horizonte”, ele se dirige a casa de Orpheus, seu filho, para finalmente o perdoar, lhe concedendo a morte que ansiava há 2.500 anos. Ele quebra aqui uma das únicas regras que parecem de importância fundamental para os Perpétuos, derramar o sangue da família.
A partir daí a série nos mostra suas últimas resoluções. Todos os nós são devidamente atados (e essa metáfora é usada pelas fúrias no inicio de todas as edições de “The Kindly Ones / Entes Queridos”), e somos levados por um clímax belissimamente orquestrado. Vemos diversos outros personagens lidarem com os mesmos problemas identitários, como as fadas Nuala e Cluracan, uma que finalmente está pronta para se passar por sua crisálida e outro que dá a luz ao seu próprio nêmesis.
Ainda sim, tudo transcorre como em um sonho. A série quando colocada em perspectiva parece levar o ritmo e a melodia de nossos devaneios. Neil Gaiman faz questão de nos colocar lá. Nós presenciamos a morte de um sonho, mas como o centurião Romano de Exiles (Sd 74): “Omnia mutantur, nihil interit” ou “tudo sempre muda, mas nada é verdadeiramente perdido”. E é isso que sentimos, quando ficamos em luto por ele em seu funeral. Eu estava lá, todos nós estávamos, mas como em sonhos, nem todos se lembram quando acordam. Todos sofremos por ele, mas no fundo, nada realmente havia morrido. Morpheus era no fim apenas uma das milhares de idéias que constituem a função de “Sonho”.
O que temos no fim, é uma maravilhosa jornada onde verdadeiramente nos transformamos junto com o Lorde Moldador. Quando Daniel encontra Destruição ele o fala “No passado você nunca esteve muito inclinado em ouvir os meus conselhos, mas as coisas mudam não?” e Daniel, um novo e amadurecido Sonho responde: “Sim, elas mudam”, o que na minha opinião reflete uma oposição direta a afirmação que Morpheus fazia a Shakespeare no século XVI (Sd 75), onde o autor afirmava que todos os homens podem mudar e o velho Sonho respondia “Eu não sou um Homem, e eu não mudo”, o que hoje sabemos com certeza que era uma das ilusões que ele apenas mantinha para si mesmo.
Em suma um dos temas fundamentais da série, se trata sobre identidade. Como é difícil aprendermos quem somos, entendermos a transitoriedade de nossa vida e e de nossa personalidade. É sobre aceitar quem você é e agir a partir desse conhecimento. É sobre acreditarmos em sonhos e no poder das histórias e sobre como somos transformados por estes e por tudo que desejamos. De certa forma, a extensão e oniricidade de Sandman, o fazem uma série sobre a vida: de todas com todas as suas histórias e todos os seus sonhos.
A melhor cena para sintetizar a morte Morpheus, é quando o emissário Eblis O’Shaugnessy, o mais novo ser presente no funeral (que acaba de ter sido criado do barro pelos perpétuos para administrar o rito) acaba por se encontrar com Daniel. Quando ele e Lucien se dirigem a Necropolis o emissário pergunta:
“Senhor bibliotecário, quem era o jovem lorde de branco?”
Lucien (com seus “filhos Caim e Abel atrás de si”) responde:
“Ele era Sonhos dos perpétuos.”
“Ele era? Mas e o despertar? A cerimônia. Eu fui notificado que Sonhos dos perpétuos era o morto”
“Sim” – Lucien responde de forma triste.
“Então quem morreu?”
Caim intervêm na conversa:
“Ninguém morreu. Como você pode matar uma idéia? Como você pode matar a personificação de uma ação?”
O emissário Eblis O’Shaugnessy, confuso pergunta:
“Então o que morreu? Por que vocês estão de luto?”
E por fim Abel responde:
“Um ponto de vista.”
Ótimo texto. Parabens!!
Realmente muito bom o texto!
Ainda não temrinei de ler toda a série… Mas é como você disse: o Mestre dos Sonhos evolui, aprende com seus erros. Acho que o que torna Sandman uma obra tão introspectiva, que nos invade, é exatamente essa profusão, a evolução do personagem continuamente, uma vez que isso ocorre a nós também.
Fora que eu nunca vi tanto conhecimento reunido em uma obra só, é inpressionante! E se me é permitido a palavra, julgo dizer que Sandman é o alter ego de seu criador, Neil Gaiman que de todas as maneiras põe-se a falar de seus mais profundos sentimentos…
(afinal de contas, uma obra tão longa e que certamente deu muito trabalho não passaria de mero ‘passatempo’.), Sandman poderia já ter sido criado… Mas foi nas mãos de Gaiman que entrou para a história *_*
Talvez Sandman nunca tenha existido realmente… quem sabe tudo não passou de um sonho de mestre Gaiman, onde ele é o personagem principal, moldando o mundo a sua maneira e aprendendo que nem sempre essa é a melhor maneira? ;D
Vá saber. Não cabe a mim decidir o que motivou Gaiman a produzir algo tão grandioso, mas cabe a mim sonhar… Afinal de contas, não é isso que Gaiman nos propõe?
Abraços e continuem com o trabalho de vocÊs *_*
…Não foi só Morpheus que mudou, acho que aprendi batante lendo Sandman, é uma história que que leva, nem que por uns instantes, a ver o mundo de um jeito diferente. Como diria a morte é “supercalifragilisticexpialidoso”!…
E claro, parabéns pelo texto, ficou excelente!
Bons sonhos
Engraçado que não vejo Sandman como uma narrativa monomítica. Mesmo que ela contenha todos itens (como qualquer boa história) não há aquele padrão emocional que se inicia com o mundo padrão, a construção da aventura até o ápice do desafio e o retorno premiado, as histórias de Sandman seguem um padrão crono-emocional diferente e no na hora da transformação do Sonho tudo se torna tranquilo para quem lê, como se fosse algo realmente natural para aquele momento e isso é a parte mais genial. O segredo é a ordem como tudo é apresentado.
Artigo extremamente bem formulado. O bom de Sandman é que ele é capaz de acrescentar algo novo não apenas cada vez que você o relê, mas também sempre que se reflete e discute sobre ele.
Você poderia ter acrescentado um discorrer acerca da mudança e do título, Perpétuos.
Fico imaginando, por fim, como seria a história da Deleite, aquela que se tornou Delírio. Em diversos aspectos seria semelhante à do Sandman? Ou será que seria seu oposto? Porque ela em grande parte é um embate para a questão do quanto você consegue mudar a si mesmo mantendo seu antigo eu. Ela não morreu, trocou seu conceito. Às vezes é porque sua mudança fora algo muito particular, a loucura não uma mudança sutil ou uma decisão própria consciente.
Camino, leia minha resenha do Prelúdios e Noturnos, onde eu afirmo exatamente isso que você disse. Ele é monomítico mas não é a jornada do herói usual. Sua semelhaça se dá por se ruma busca por identitade e auto -conhecimento.
Ainda não cheguei na sua resenha do Prelúdios, mas estou gostando bastante do que ando lendo.
Foda! melhor corbetura que um site já fez sobre sandman, o ambrosia está de parabéns….
Sem duvida e a melhor cobertura de Sandman no Brasil.
Com a Artigos Maravilhosos e com Textos Incríveis
Parabéns A Todos da Equipe Ambrosia
Como disse ao Fê, um detalhe: “Acho interessante a escolha do nome Daniel pelo Gaiman, que interpreta sonhos no velho testamento e pros muçulmanos criou essa arte …” a Oneiromancia muçulmana.
Assim como a arte Morpheus helênico, um ponto de vista. rs
Excelente texto.
Meus parabéns…
Foi difícil para mim tão jovem (e ainda é) compreender toda magnitude que envolve Sandman, mas acho que compreender essa história é difícil para todo mundo que a leu o que torna mais fácil a paixão por ela.
Creio qua nunca tenha aprendido tanto com uma história antes e talvez não aprenda tanto com nenhuma outra.
Sua resenha foi maravilhosa e conseguiu captar em poucas linhas uma boa parte da essência da obra de Neil.
Parabéns!
Obrigada Felipe, além deste, li a parte dois deste artigo, assim como li sobre todos os perpétuos e senti na qualidade dos textos, o amor que vc tem sobre a obra. Um abraço!
Sensacional!!