Cultura colaborativa! Participe, publique e ganhe pelo seu conteúdo!

Analisando: A Caixa de Areia (Mutarelli)

Estou tentando seguir com a intenção de escrever resenhas acerca das hqs que me chamam mais a atenção. Fiz um artigo sobre o Mutarelli faz pouco tempo; todos têm fases e eu tenho lido muitos de seus trabalhos nessas últimas semanas. Aproveitando a empolgação, portanto, escrevo esta crítica sobre A Caixa de Areia ou eu era dois em meu quintal (devo admitir que eu ainda não entendo se são um ou dois títulos).

Comprei o livro ainda esta semana e já pensava na possibilidade de escrever algo sobre ele. Fiquei matutando sobre o que colocaria na tela e como começar, e a frase “Começe pelo começo” não saia de minha mente. Não gosto dessa frase, na verdade acho-a particularmente estúpida e conservadora, mas lá estava ela. Dei início a minha leitura e logo nas primeiras páginas leio as seguintes palavras de Mutarelli: “Talvez fosse melhor começar pelo começo”. Eu gosto de coincidências e portanto seguirei o conselho. Começo, então, pela capa.

Nela, há dois pontos que chamam nossa atenção: o título e uma imagem. Ambos têm suas particularidades e logo a primeira coisa que estranhei foi o caráter duplo do título, que na verdade combina muito com a estruturação da história contada no quadrinho (que será detalhada mais à frente). Mas após ter lido tudo, voltei para a capa, e o que mais me instigou foi a imagem. Ela, a princípio, pareceu uma mancha amorfa, sem significado, mas agora, após ler o texto, sua mente é capaz de observar tudo a partir de novos referenciais, e aquela imagem que antes não era nada passou a ganhar um significado para mim. Era como um teste de Rorschach, em que o abstrato deixa de ser abstrato.

Esse acontecimento banal a princípio também não tem significado nenhum, e provavelmente ocorreu devido a uma simples falta de atenção minha ao ver a figura inicialmente. Mas o que me levou a contar esse fato como introdução foi o como ele ilustra um dos principais pontos que são tratados no livro.

Mutarelli faz um ótimo trabalho mostrando o quão séria uma hq pode ser, mesmo não abordando temas pesados ou políticos, como é o viés de alguns autores, mas na exploração do eu e da realidade. Ao longo dos quadros Mutarelli explora a nossa noção do real e da ação de idealizar e como nunca se pode reproduzir algo que acontecimentos com fidelidade, tudo está sempre calcado na sua perspectiva. Resumidamente, ele procura trabalhar o quanto a realidade é uma perspectiva e, portanto, é algo eternamente mutável e indefinido.

O tema é algo que costumeiramente se encontra nas páginas de um tratado filosófico, e de fato em uma história de aproximadamente 100 páginas aonde grande parte do espaço é ocupado por imagens, há um a enorme possibilidade das idéias apresentadas deixarem a impressão de que poderiam ter sido desenvolvidas mais profundamente, mas este fato não chega a ser algo que atrapalhe, incomode ou tire o crédito da hq, apesar de deixar o gostinho de “quero mais” no leitor.

Quanto a forma da hq, temos uma mesma história sendo contada em 3 histórias, uma introdutória e bastante instigativa e outras duas que se encontram entrelaçadas. Estas são escrivas de forma a, a princípio, darem a impressão de serem independentes e disconexas, mas a união delas ao final proporciona um desfecho excepcional. Gostaria muito de comentar mais profundamente sobre a comunicação feita entre estas duas histórias, mas quero evitar spoilers desnecessários. Acho que é suficiente colocar que essa cisão irá ilustrar de forma magistral as idéias trabalhadas no texto sobre a realidade, principalmente quando se fala sobre a questão do que aconteceria se nós fossemos todos meros devaneios de uma outra pessoa, se só existíssemos devido ao pensamento de outrem e o que aconteceria se esse pensamento acabasse, nós desapareceríamos?

Essas questões eu acredito serem básicas para todos aqueles que gostam de estudar ou simplesmente pensar sobre as pessoas em um nível ôntico e metafísico. E é uma ótima iniciativa do Mutarelli trazê-las e estimulá-las dentro do público de hqs.

Questionamentos desse gênero, porém, também podem ser encontrados em trabalhos de outros artistas do ramo, como é o caso de trabalhos de Alan Moore, mas eles são abordados através de um viés completamente diferente. Enquanto o Moore adota uma abordagem voltada para o encadeamento de questionamentos através de respostas, estas geralmente ligadas ao ocultismo, à Cabalá e, é claro, inúmeras referências a Aleister Crowley, tendo Promethea como o melhor exemplo, que é praticamente um manual dos ensinamentos de Crowley em quadros, além de imagens bastante experimentalistas e coloridas, tendo um enfoque mais gnosticista e místico da questão. O Mutarelli tem uma abordagem mais irônica em alguns aspectos e mundana (não no sentido pejorativo, uso essa palavra apenas para fazer a correlação com o trabalho mais místico de Moore) em outros e não procura responder ou mostrar uma visão de mundo, apenas em apontar algumas questões.  Talvez uma boa forma de descrevê-lo seja afirmas que ele adota um foco mais existencialista.

Outro ponto bastante peculiar do autor é o traço de Mutarelli. O desenhista é capaz de produzir ilustrações que são ao mesmo tempo bastante detalhadas, que trazem um aspecto de realismo e surrealidade. Esse manejo de sua arte, porém, é capaz de nos mostrar perfeitamente como funciona o olhar humano, o como ele aumenta traços, o como ele define pontos importante, o quanto uma pessoa é capaz de criticar os traços de seu rosto, ou seja, o quanto a realidade é, mesmo em pequenos aspectos, muda de acordo com a ótica das pessoas, nunca havendo algo que poderia ser classificado como fidedigno à realidade. Assim, Mutarelli é capaz de transmitir através de seu traço aquilo que ele deixa claro em suas palavras.

Enfim, espero ter sido capaz de despertar uma vontade de lerem o texto, tentei não comentar muito sobre passagens específicas (infelizmente, pois algumas são maravilhosas), mas para quem quiser ainda ler mais sobre o tema, a mulher de Lourenço Mutarelli, Lucimar Mutarelli escreveu em uma revista eletrônica sobre esta obra, sendo seu olhar sobre a mesma bastante interessante não apenas por seus complementos ao que escrevi aqui, mas também por ela falar como ser inserido no trabalho.

E fico feliz de ter conseguido acabar de escrever meu artigo antes do Rei acordar…

Compartilhar Publicação
Link para Compartilhar
Publicação Anterior

Diretor e Roteirista falam sobre Red Sonja

Próxima publicação

Tokyo Underworld ganhará os Cinemas

Comentários 3
Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Leia a seguir